Caleidoscópio

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Busco na vida, a magia. A delicadeza em meio à aridez do cotidiano, ela que espanta a rotina, que revoga a mesmice, que dissolve o tédio, que permite inesperadas descobertas: Novos sonhos, novas sinapses, trocas, encantamento. O viver é um poema contínuo que se realiza em mim a cada instante, assim, vou ocupando as moiras que tecem meu destino, com novos pontos, inusitados nós, cores e formas, alongando os fios da vida, de forma tal, que me permitam descobrir outros roteiros. Envio-lhes intermináveis novelos de linhas para que me prendam a abstratas tessituras. Preciso de horizontes instigantes que me remetam à dunas que se movem, grão a grão e possibilitem que o meu vir a ser seja repleto de ação criativa, me reinventando a cada nó. Horizontes estanques me desarmam.
Seria um jogo? Não! Penso que viver é como inserir-se num caleidoscópio. As possibilidades estão todas ali, naquele tubo onde se espelha a vida. Cabe a mim girá-lo, formando combinações diversas, agregando cores, luzes, frágeis composições que podem reagrupar-se a partir de um sopro, de um leve movimento de dedos e formar novos desenhos. Novas possibilidades de existir.
Faço de meu mundo este caleidoscópio. Muitos acham os desenhos embaralhados e se perdem nas combinações. Eu não! Sei exatamente a minha cor e forma, e descobrir o novo encaixe é instigante, porque é sempre outro desenho que se forma. Buscá-lo, em todas as suas variantes possíveis, para mim, é entender o sentido da Vida e vive-lo plenamente, sem temer o breve pulsar da felicidade.
Ludmila

    

    Contos de fada russos: Vasnetsov

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    Vejam a beleza que decobri na Internet!
    Quando estive em Moscou, fiz questão de visitar a casa/estúdio de Victor Vasnetsov, o famoso pintor que ilustrou os mais lindos livros de contos de fadas russos, e que viveu de 1848 a 1926. Os personagens dos quadros, imensos, em seu estúdio de pé direito altíssimo, povoaram por muitos anos a minha infância, passada entre Baba Yagás, Princesas rãs, O tapete voador, Alionushka, o Principe Ivan e o Lobo Cinza e tantas outras, que me tornaram uma menina muito rica, e que hoje se mudaram para a mente de meus netos e das crianças com quem convivo, contando histórias.
    Não imagino o mundo sem os contos de fada e sem a magia que permeia suas páginas. Não imagino a vida sem os livros, sem os escritores, sem os poetas. Uma pessoa que não se vacinou com o vírus do encantamento que a literatura contem, não conheceu dragões, fadas, duendes, corvos, unicórnios, tempestades e nem abismos. Nunca desvendou cavernas e nem ilhas repletas de tesouros. Não sabe das árvores falantes e nem das fadas e dos elfos. Como se pode viver assim? (Ludmila)

        

      Conto de fadas russo:O peixinho dourado

      Ilustração  de Ivan Bilibin

      Ilustração de Ivan Bilibin

      Dedico esta historia para minhas netas que ainda gostam de contos de fada: Anninha, Alecsia e Lórien, e para todos os que voltam facilmente a este mundo maravilhoso da infância. (Ludmila)

      Há muito, muito tempo atrás, numa aldeia distante, vivia um casal de velhos, em extrema pobreza. Sua casa era uma isbá (casa de madeira russa) caindo aos pedaços.
      O velho ganhava a vida pescando e sua mulher tecia.
      Um dia, o velho saiu para pescar e qual não foi sua surpresa, quando puxou a rede e, preso nela, encontrou um lindo peixinho dourado.
      “Por favor, meu bom homem, jogue-me de volta ao mar” ele pediu, falando com sua vozinha de peixe. O velho ficou muito assustado. Em toda a sua longa vida, jamais ouvira um peixe falar, mas, enfim, sempre havia uma primeira vez para tudo!
      “Se você me soltar, pode pedir o que quiser, e eu satisfarei o seu desejo, pois sou o rei deste Oceano!”
      O pescador, então, delicadamente, soltou as linhas da rede que prendiam as barbatanas do peixinho e, devolvendo-o ao mar, falou:
      “Vai embora com Deus, Vossa Majestade Marinha! Eu realmente não preciso de nada de você”!
      “Pois, se você se lembrar de algo que queira, é só voltar a este mesmo lugar e chamar pelo meu nome: Peixinho Dourado, e eu voltarei.” “Obrigado, meu bom homem! Obrigado!” E o pequeno peixe desapareceu, feliz, entre as ondas!
      Voltando pra casa, o pescador, maravilhado, foi logo contando o que aconteceu com ele pra sua mulher.
      “Mas eu não acredito! Estou pra ver um velho mais tolo do que você neste mundo!”
      “Então você me apanha um peixe dourado que é simplesmente o rei do Oceano, devolve ele são e salvo pra água e não pede nada em troca?”
      “Pedir o que, mulher? Nós já estamos tão velhos, passamos a nossa vida inteira aqui neste lugar onde não nos falta nem teto e nem comida…Pedir o quê para o pobre peixinho?”
      “Pobre? Pobre peixinho? O rei desse mundão de água? Pois volte já onde o pescou e diga a ele que precisa de uma moringa nova, pois a nossa quebrou! “A nossa quebrou, ouviu bem? disse irritada a mulher.

      ilustração de Guenadi Konstantinovich Spirin

      ilustração de Guenadi Konstantinovich Spirin


      O velho, para não contrariá-la, voltou para a beira do mar. O dia já estava entardecendo, e algumas nuvens se formavam no céu azul. “Peixinho! Peixinho Dourado! Vossa Majestade Marinha!” Gritou o pescador. Passados alguns minutos, lá veio o Peixe, desta vez com uma linda coroa de ouro sobre a sua cabecinha. “Olá, meu amigo! Lembrou-se de algo que queira me pedir?”
      “Eu não, disse o velho, envergonhado, mas a minha mulher, quando soube que você queria me dar um presente, disse que precisa de uma moringa nova!”
      “Pois eu já atendi ao seu pedido. Volte para casa que sua moringa está lá!”
      “Adeus, peixinho!” “Adeus pescador!”
      Quando o homem voltou para casa, sua mulher já o estava esperando com o presente nas mãos. “Mas você é mesmo um bobão”, disse-lhe ela. Salvou o rei dos mares e só lhe pede uma moringa? Olhe para nossa isbá! Ela a qualquer momento cai na nossa cabeça…Chame o peixe e lhe diga que quer uma casa nova!”
      E lá se foi o nosso velho, chamar novamente pelo Peixe Dourado. A noite estava caindo, e as ondas batiam com força sobre as pedras.
      “Olá, meu bom velho! O que você quer, agora?”
      “Desculpe, meu amigo, mas a minha mulher me deu a maior bronca por ter pedido apenas a moringa, enquanto a nossa casa está quase caindo…”
      “Pois volte que a sua nova casa já está lá!”
      “Obrigado, Peixinho Dourado! Muito obrigado!”
      Quando retornou pra casa, ele mal acreditou no que seus olhos viam: lá estava um belo chalé, com a chaminé fumegando, a cerca pintada de branquinho, o seu cão fazendo a maior festa!
      Ilustração de Guenadi Konstantinovich Spirin

      Ilustração de Guenadi Konstantinovich Spirin


      “Satisfeita, mulher?”
      “Estou satisfeita não! Olhe para este chalé!” “Agora olhe para mim!” Como vou morar nessa casa tão bonita, toda esfarrapada do jeito que estou?” Agora eu não quero mais ser pobre! Volte ao seu peixe e lhe diga que eu quero ser nobre!”
      E lá se foi o velho, chamar o peixe novamente. O caminho ia ficando escuro, pois a lua mal aparecia por entre as nuvens.
      “E agora, o que sua mulher resolveu que vai querer?” perguntou o peixe.
      “Ah! meu caro peixinho dourado! Minha mulher resolveu agora que quer ser nobre!”
      “Pois que assim seja!” “Volte para casa tranquilo, que seu desejo é uma ordem pra mim!”
      E o que aconteceu quando ele voltou para casa? Ah, o chalé tinha desaparecido e em seu lugar estava no terreno uma bela mansão. Sua mulher vestia um rico vestido de seda, todo bordado de pedrarias. Seus cabelos estavam arrumados numa longa trança e sobre a cabeça ela trazia um rico toucado. Colares de ouro adornavam seu colo e anéis de pedras preciosas enfeitavam seus dedos. Empregados andavam pela casa, ajeitando os mínimos detalhes. O pescador, vendo-a toda arrumada, quase não a reconheceu!
      “Saudações, mulher! Espero que esteja, finalmente, satisfeita!”
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      Ela, olhando-o com desprezo, apenas ordenou que, daquele dia em diante, ele fosse viver no estábulo.
      Passaram-se algumas semanas sem que, a agora importante dama, fosse importuná-lo. A vida do velho pescador continuava na mesma rotina. Acordava, cuidava do cão, pegava sua rede e ia pescar. Certa tarde, retornando para o estábulo onde agora morava, encontrou uma serva da mulher que viera trazer-lhe o recado de que a Senhora queria vê-lo.
      “Quero que você vá lá chamar o peixe!” Disse-lhe a velha.
      “Estive pensando e descobri que existe o Rei que é mais importante do que eu, a quem todos temos que obedecer.” “Pois eu não vou obedecer a mais ninguém, entendeu?” “Então eu quero que você vá lá e ordene ao peixe que me torne a rainha de toda a terra!”
      “Você ficou louca, mulher? Eu não vou pedir mais nada ao Peixe Dourado!”
      “Você ousa me desobedecer?” Berrou a mulher, esbofeteando, furiosamente seu velho marido.
      “Vá lá e não me volte sem o meu pedido atendido!” “E não vou falar isso outra vez!”
      Sem ter o que fazer, o pobre homem dirigiu-se ao ponto de encontro com o Peixinho dourado e, mais uma vez chamou por ele. E mais uma vez o peixe apareceu. A água estava agitada, as ondas altas se quebravam com violência sobre a praia, e o céu estava escuro.
      “Majestade, minha velha enlouqueceu”! “Ela agora quer ser a Rainha de toda a terra!”
      “Não se preocupe, meu amigo!” “Volte lá que seu pedido já foi atendido” disse o peixe.
      Ilustração de Guenadi Spirin

      Ilustração de Guenadi Spirin


      Quando o pescador voltou, encontrou, no lugar da mansão um grande palácio, e sua mulher estava sentada no trono cercada por vários nobres que a bajulavam. Uma fileira de guardas armados protegiam o caminho, então ele nem pode chegar perto.
      “Saudações, Majestade!” gritou de longe! “Satisfeita agora?”
      A nova Rainha da Terra sequer olhou para o seu lado. Levantou apenas um dedo apontando em sua direção, e já vieram dois guardas que o colocaram para fora do castelo.
      Passados alguns dias, a Rainha chamou novamente o velho à sua presença e ordenou-lhe que fosse ao peixe, para dizer-lhe que agora, ela queria tornar-se a Imperatriz de toda a Terra e também do Mar, e que o peixe em pessoa viesse servi-la.
      “O pescador ficou tão apavorado, que nem protestou e, lentamente, pôs-se à caminho da praia.
      Uma terrível tempestade se formara, com raios, trovões e ondas gigantescas que se quebravam sobre as pedras.
      O velho gritou pelo peixe. Gritou e gritou o mais alto que conseguiu, até que a pequenina cabeça dourada apareceu em meio às ondas.
      O pescador, cabisbaixo, triste, envergonhado, explicou ao peixinho o que sua mulher queria agora. Desta vez o peixe nada lhe respondeu. Simplesmente virou-se e nadou para bem longe daquela praia.
      Depois de esperar muito tempo, em vão, que o peixinho voltasse, o velho tomou o caminho de volta para casa, onde, uma surpresa o aguardava. No lugar do suntuoso palácio, encontrou a velha isbá caindo aos pedaços. Sua mulher, vestindo os mesmos trapos, tecia ao lado da moringa quebrada, caída no chão.

      Tradicional conto de fadas russo, recontado de memória por Ludmila Saharovsky)

      Ilustração de Guenadi Konstantinovich Spirin

      Ilustração de Guenadi Konstantinovich Spirin

      Poster de 1909 da Exibição Internacional de ilustradores, em Kazan, Russia

      Poster de 1909 da Exibição Internacional de ilustradores, em Kazan, Russia

      As ilustrações deste conto são do artista russo Ivan Bilibin e também de Guenadi Konstantinovich Spirin, ilustrador russo contemporâneo, que reside atualmente nos Estados Unidos.
      Spirin nasceu na Russia em 1948, cursou a Academia das Artes de Moscou e a Universidade Strogonov, Hoje, ele é considerado como um dos melhores ilustradores de contos de fada da atualidade. Tem seus trabalhos em diversos Museus e em vários sites da Internet, entre os quais

      

      Para Erik: Conto de Desninar

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      Conto de Desninar ou, uma noite na fazenda

      A noite já andava pelo meio, ou assim me pareceu, quando meu caçula, os olhos bem abertos, acordou-me, rolando sobre meu corpo e parando ao lado da cama larga da fazenda. “Mãe!”
      A luz do abajur acesa, encontrei-me dentro dos olhos de meu filho, grandemente abertos pelo que precisavam me contar. “Levanta mãe!” “Levantar para quê?” argumentei morta de sono. “O bezerro tá comendo os antúrios da vó”. “Os antúrios?” “Logo os antúrios? “Volte para a cama e vê se sonha que ele come alguma flor diferente” Mãe, ele brilha”! Volte para a cama, antes que eu fique brava!” “Ele brilha, mãe! Venha ver!” Levantei-me sonolenta e caminhei para a porta que se abria para os canteiros. “Cadê o bezerro, filho”? No céu, a lua imensa iluminava todo o quintal, e mais nada. “Ele estava lá, mãe, no meio do jardim… você demorou para vir, ele foi embora.” “E posso saber o que foi que o senhor veio fazer no terraço de madrugada?” “Ver o bezerro, ele estava fazendo barulho.”
      “Menino, já pra cama! E ele foi… pra minha! Ajeitei-me da melhor maneira, para conseguir o diminuto espaço que restou do travesseiro, pensando que fosse dormir!”
      “Mãe, e se ele comer as rosas também?” “A vó vai ficar bravona“. “Mãe, você já viu bezerro luminoso”? “Mãe, que cor que é luminoso?”
      Como dormir com meu filho me questionando , abrindo, a cada pergunta, meus olhos com seus dedinhos e atiçando-me a imaginação com aqueles detalhes fantásticos?
      “Mãe, se amanhã ele ainda estiver lá, você deixa ele ficar para mim?” “Mãe, e se ele for embora?” “Mãe, escuta… o barulhinho de novo. Vamos, mãe, vamos!” “Filho, pelo amor de Deus, amanhã tenho que levantar cedo!”
      “Então fica ai, que eu vou só dar uma espiadinha”.
      “Corre, mãe, corre, ele voltou”!
      E lá vou eu, de novo: os chinelos, o roupão, a porta da varanda, a lua cheia e … mais nada!
      “Filho, não tem bezerro nenhum”. “Ô, mãe, você está cega? Ele está comendo o antúrio branco!”
      Coloquei a mão na testa de meu menino. Estaria com febre, para delirar daquela forma? Mas não! Beijei sua cara fresquinha, sentando–me com ele ao colo, no sofá.
      “Você sabia que bezerro come flor?” “Sabia não!”
      “E a avó, amanhã, heim…” “Ela não vai acreditar!”.
      Vencida pelo cansaço, resolvi ceder: “Pois é, descobrimos um bezerro que se alimenta de antúrios”.
      “Ah, mãe, te peguei! Você estava vendo e não queria que eu soubesse, não é?” “Verdade! Eu queria só dormir!” “E agora?” “Agora já passou.” “Então vamos espiar de novo?” “Vamos!”
      Não adiantava mesmo, afinal, ou eu via de uma vez o tal do bezerrinho comedor de antúrios, e a gente voltava para a cama, ou passaríamos a noite inteira naquele viu-não-viu.
      “Mãe, como será que ele se chama?”
      Acho que se chama Raíto. E você, o que acha?”
      “Eu acho que ele se chama Ventania.
      “E porque Ventania?” “Ué, vento não é transparente?”
      “Mãe, como você acha que ele veio parar no meio do jardim?”
      “Não sei… voando talvez!” “Sem, asas?” “Sem asas”.
      “Que jeito?” “Do jeito que vento voa…” “Mãe, e os antúrios da avó?” “Amanhã a gente resolve…” “Gozado, né, mãe!”
      “Gozado o quê?” “Bezerro transparente comer flor… como é que ela não aparece na barriga dele?” “Ele mastiga até virar suquinho.”
      “Mãe…” e Erik fechou os olhos, vencido pelo sono, finalmente!
      A manhã chegou rápida, e com ela os afazeres. Levantei-me cedo. Era domingo e uns amigos viriam para almoçar. No banho surpreendi-me com as lembranças da noite mal dormida. Criança tem cada uma!
      Saí do casarão e fui colher algumas flores, no jardim, para enfeitar a sala.
      Diante do canteiro dos antúrios, perdi por instantes a respiração. O coração disparou dentro do peito! Realmente não havia uma flor sequer, em meio às folhagens, que ontem estavam tão enfeitadas.
      Engoli em seco e uma única questão passou-me pela cabeça: o que eu diria para a avó, quando ela chegasse? Então, ensaiando, falei alto para mim mesma:”Samaria, a noite passada, um bezerro luminoso, de nome Raíto ou Ventania apareceu no seu jardim e comeu todos os seus antúrios!” Depois, o Erik que lhe desse maiores explicações, afinal, o bezerro era dele!”
      (Ludmila Saharovsky)
      Escrito para meu filho caçula em seu sexto aniversário, em 4 junho de 1978 e publicado no jornal o Jacareiense no mesmo ano.

      Meu rebento, com o seu rebento. Erik e Lórien

      Meu rebento, com o seu rebento. Erik e Lórien

         

        Árvore Adentro – Octávio Paz

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        Cresceu em minha fronte uma árvore.
        Cresceu para dentro.
        Suas raízes são veias,
        nervos suas ramas,
        Sua confusa folhagem pensamentos.
        Teus olhares a acendem
        e seus frutos de sombras
        são laranjas de sangue,
        são granadas de luz.
        Amanhece
        na noite do corpo.
        Ali dentro, em minha fronte,
        a árvore fala.
        Aproxima-te. Ouves?

        (Trad. Antônio Moura)

          

          Palavras/Silêncios

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          “O corpo é uma coisa encantada que precisa mais que comida e bebida para viver.
          Ele precisa de palavras. Porque é nelas que mora a esperança”
          (Rubem Alves)

          Amo as reflexões às quais os escritos de Rubem Alves sempre me remetem.
          Penso em sua afirmativa de que “o corpo necessita de palavras que o alimentem” e divago…Será?
          Não é em todas as palavras que moram a esperança, a beleza, a delicadeza.
          Existem algumas, venenosas, que vão se desprendendo de nós, assim…de repente, sem qualquer compromisso que não seja o de ferir. Armas palavras.
          Outras vadias, vazias soltam-se ao vento, tagareladas, esparramadas, diluídas, não deixam nem uma única pegada. Ocas palavras.
          Sem âncora, sem encadeamento, sem eco, elas como que entram por um ouvido e saem pelo outro, placebos de idéias que, se não contêm em si o germe da comunicação, a intenção da partilha, do preenchimento do outro com fé e alegria… mal também não fazem. Palavras cotidianas.
          Fala a mãe, fala o pai, fala o filho, fala a vizinha, a amiga, a avó, o padeiro, o pedreiro, o colega de trabalho. Falam o dia inteiro, mas… o que foi que disseram? Eu mesma não me recordo de um décimo do que matraquei, o que dizer então, do que ouvi? Rumino com meus botões: porquê falamos tanto?
          Nesse mundo onde “quem não se comunica se trumbica” jamais nos ensinaram o poder de comunicação que há, também, no silêncio. Nós nunca nos concedemos um único minuto, em nossas vidas, para “ouvir” com os outros sentidos: intuir, perceber as múltiplas mensagens contidas num gesto, num olhar, num suspiro. O corpo inteiro fala!
          Parece que vivemos numa época de terror generalizado ao silêncio! Ao nosso derredor precisa haver sempre algum ruído: do rádio, da TV, do walkman, do CD, da campainha do celular, do pager, tudo permanentemente ligado! E tome música, notícias, receitas, entrevistas, críticas, testemunhos, propagandas, diálogos, monólogos, gritos e sussurros. E agora, conversamos também com olhos e dedos, o dia inteiro “ligados” ao computador.
          O silêncio talvez nos assuste tanto, porque nos deixa a sós conosco mesmos, a cabeça livre para pensar, os sentidos libertos para investigar, sentir, meditar, filosofar, descobrir. E, para não constatarmos o drama de que não temos qualquer assunto íntimo que nos instigue, recorremos aos sons ininterruptos que certamente nos entorpecem os sentidos e nos libertam do compromisso com outras necessidades mais sutis. Se nós não conseguimos saber da semente, da raiz, do galho, da flor e do fruto em nós, como saber a árvore que somos? Como entrar em sintonia com o mundo que nos cerca, se não ouvimos, não entendemos, não decodificamos suas linguagens de vento, de chuva, sol, lua, primavera, outono, orvalho, sereno, neblina? Se não percebemos o som de abelhas, moscas, mariposas, sapos, cigarras, grilos, riachos, cachoeiras, mares?
          Ah! Que saudades de nossos antepassados que podiam afirmar com segurança que iria chover, gear ou haver longa estiagem apenas compreendendo o discurso da natureza. Eles ouviam e entendiam até a linguagem de seus ossos!
          Tudo se comunica, amigos, mas não apenas por palavras. O mar tem voz, a floresta fala, o livro conta histórias. Conversam pessegueiros e violetas, cães, pássaros, cavalos, constelações. Vibra o infinito, dentro e fora de nós: a melodia das esferas…
          Talvez, para tentarmos penetrar nesse mágico espaço do nascedouro das palavras – certas, consistentes, raras – necessitemos do exercício do silêncio. Quem sabe consigamos semear mais paz, amor e esperança.
          Não custa tentar! (Ludmila Saharovsky)

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