Palestra na Sala Ariano Suassuna

Abrindo as atividades de segundo semestre nas escolas municipais de Jacareí, fui convidada pela secretária de educação, Maria Thereza Cyrino para falar aos professores da rede pública sobre a minha experiência com a escrita.
E eu lhes contei como a literatura entrou em minha vida, ainda na mais tenra infância, no campo de refugiados na Áustria, onde nasci. E foi uma experiência ímpar. Eu nunca havia falado para um auditório tão cheio e de pessoas tão atentas. A seguir publicarei alguns trechos de minha palestra:

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Eu nasci no pós guerra, num campo de refugiados de nome Lager Parsch, na cidade de Salzburgo, na Áustria.
Vocês podem imaginar um começo de vida na pobreza mais franciscana? Meus pais e avós paternos, como a maioria dos refugiados, perderam tudo durante a segunda guerra: perderam amigos, parentes, perderam sua casa, seus objetos de valor, roupas, livros, documentos. Só não perderam a vida e a vontade de viver e reconstruir tudo, que recomeçou para eles com o casamento de meus pais e o meu nascimento.
Todos, naquele campo, como nós, levavam uma vida extremamente diferente em todos os sentidos. Não havia emprego qualificado, não havia salário, vivia-se de gorjetas pelos serviços prestados e na verdade, também não tinha o que comprar. Morávamos em barracões construídos para nos abrigar e que eram divididos por várias famílias.

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A cozinha e os banheiros eram comunitários. Qualquer objeto abandonado na rua servia de material de troca ou de matéria prima para as necessidades mais prementes. A minha roupa era feita com reformas de outras roupas doadas para nós, que a mãe e a avó reformavam. Os brinquedos também eram confeccionados da mesma forma: eram bichos de pano, com moldes inventados ali, pelas costureiras. Os carrinhos para os meninos eram feitos de sucata. Os brinquedinhos de madeira eram confeccionados pelos mais habilidosos nas horas vagas. E havia também as doações do povo austríaco.

minha avó, a primeira à direita, na oficina de brinquedos em Salzburg

minha avó, a primeira à direita, na oficina de brinquedos em Salzburg

Depois da guerra, os russos que fugiram do regime soviético e se espalharam pela Europa, e se alistaram no exercito alemão na esperança de que, vencendo a guerra, os alemães extinguissem o regime comunista, não podiam ser repatriados, porque seriam executados, como muitos foram. Assim, a quantidade de russos que se tornaram exilados era enorme. Para abriga-los foram construídos os campos de refugiados, administrados pelos países aliados: França, Inglaterra e Estados Unidos. Minha família foi enviada para o campo administrado pelos Estados Unidos.

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Era uma sequencia de barracões. Cada barracão tinha internamente um longo corredor para o qual se abriam as portas dos quartos. Cada quarto abrigava 4 pessoas. A cozinha, a lavanderia e os banheiros eram comunitários e ficavam no final do corredor. Todas as famílias recebiam uma cesta de alimentos a cada 15 dias, com alimentos básicos para a sobrevivência: manteiga, bolachas cream cracker, um pacote cacau, uma lata de aveia, uma lata de leite condensado, leite em pó, macarrão, farinha de trigo, enlatados, fermento, uma lata de queijo cheddar, azeite, latas de sardinha, pepinos em conserva, açúcar e sal e um grosso tablete de chocolate. Legumes eram plantados em pequenas hortas improvisadas e cuidadas por todos. Os bosques nos forneciam cogumelos para sopas deliciosas e frutas silvestres para as geleias. Sobrevivemos.
Foi criada uma comissão internacional para realocar os refugiados e vários países se prontificaram a receber certo número deles, de acordo com as suas profissões, idade, numero de filhos e de idosos. Muitos foram para a Austrália, A África do Sul, a Argentina, os Estados Unidos, Venezuela, Uruguai, Brasil.

Bom, nem é preciso dizer que não havia TV nessa época, e os poucos aparelhos de rádio eram ouvidos por todos num barracão que era utilizado como salão de reuniões, ao qual foram acoplados uma capela da religião ortodoxa e, mais tarde, construída uma escola para os pequenos alunos. Neste nosso campo, a maioria das pessoas possuía formação superior, assim não foi difícil encontrar professores.

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Não havia livros. Nós, pequenos, não sabíamos ler, então, os mais velhos nos agrupavam nesse salão comunitário e nos distraiam contando as histórias de contos de fada, que sabiam de cor. Histórias, poemas infantis, musicas. Formigas, grilos, mosquitos, os seres que moravam no bosque que nos cercava, eram os protagonistas de incríveis aventuras, junto com o gato de botas, o cavalinho corcunda, a princesa rã, o peixinho dourado, o hotel dos pequenos bichinhos que se refugiaram numa luva perdida no campo, e tantos outros personagens que povoaram nossas manhãs, tardes e muitas noites de encanto e fantasia. O avô, à noite, junto com a mãe se empenhavam em escrever e ilustrar (ambos desenhavam muito bem) contos dos quais se lembravam, produzindo uns livrinhos artesanais, que acabaram ficando na Áustria.

10 desenhos infantis

11 contos rusos

12 contos russos

Quando conseguimos o visto para nos fixarmos, finalmente, no Brasil, o início de nossa vida de imigrantes, instalados em dois cômodos na então Aldeia de Carapicuiba também não possibilitava o luxo de comprar livros infantis. E livros, na época eram um objeto bem caro. Livros brasileiros a gente não sabia ler. Livros russos, não existiam. Mais uma vez o avô passou a contar e a desenhar para mim personagens e contos dos quais se lembrava ou que inventava, onde eu sempre era a protagonista. A seguir fotos de uma rua de Carapicuíba e da aldeia vizinha à nossa casa.

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E foi assim que a literatura entrou na minha vida e os livros tornaram-se meus melhores amigos de infância. Viajar por historias fantásticas, com personagens mágicos em terras distantes fazia a minha imaginação se desprender da vida dura que nos cercava e viajar por um outro mundo mágico e onírico que povoava minha imaginação e me fazia companhia, na falta de amigos reais e de outras tantas diversões das quais falta de dinheiro nos privava.
Assim, para mim é muito difícil entender como existem pessoas que não leem e não estimulam as crianças ao hábito da leitura.
Tudo começa quando a criança fica fascinada com as histórias maravilhosas que moram dentro do livro.
A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras. Quando alguém lê e a criança escuta com prazer, ela se volta para aqueles sinais misteriosos chamados letras e deseja decifrá-los, compreendê-los, porque eles são a chave que abre o mundo para as delícias que moram dentro. Ela quer aprender a ler, porque percebe que aqueles símbolos podem contar e recontar sempre que quiserem ouvir, a mesma história.
Quando uma criança de dois, três, quatro anos ouve a voz da mãe, da avó, da professora, ela lê o texto com uma voz emprestada. Ela como que está “lendo” com os seus ouvidos.
Para muitos pais e professores, a maturidade e o preparo das crianças para a vida adulta depende exclusivamente do ensino pedagógico oferecido pelas escolas. Esquecem-se eles, de explorar os sentimentos de seu pequeno aluno, como integrantes fundamentais que são, da formação de caráter daquele ser que lhes é oferecido para ser formado. O mundo interior de cada um, desconhecido pela consciência intelectualizada encerra anseios e segredos, guarda a metade de nós mesmos, e sua assimilação é imprescindível para o encontro de respostas honestas para os grandes enigmas da existência.
Nesse particular, os contos de fada cumprem relevante papel: eles são uma expressão cristalina e simples de nosso mundo psicológico profundo. São exemplos de conduta moral, de prêmio e castigo pelas nossas boas e más ações. Eles nos falam sobre os medos e a coragem em enfrenta-los, sobre a fraternidade, sobre outros mundos. Eles possuem uma fórmula mágica capaz de envolver a atenção das crianças e despertar-lhes sentimentos e valores intuitivos que clamam por justiça, por segurança, por compaixão.
Quando pedem ao narrador que conte a mesma história, eles revivem sentimentos que vão sendo trabalhados a cada repetição daquele drama, ampliando os significados ou substituindo-os por outros mais eficientes conforme as necessidades do momento.
Ao trazer a literatura infantil para a sala de aula, o professor estabelece uma relação de diálogo com o aluno, com o livro, com sua cultura e com a sua própria realidade. Além de contar ou ler a história, ele cria condições para que a criança trabalhe com a história a partir de seu próprio ponto de vista, trocando opiniões sobre ela, assumindo posições frente aos fatos narrados, defendendo atitudes e personagens, criando novas situações através das quais as próprias crianças vão construindo uma nova história.
Bom…mas como implementar tudo isso e colocar em uso na nossa realidade? Nas nossas escolas?
Em primeiro lugar, precisamos ser leitores apaixonados. Somos os exemplos mais vivos para os pequenos que, depois dos pais, veem nos mestres os seus heróis. Entrem na sala de aula portando nas mãos um livro. Comentem como ele é interessante, instiguem a curiosidade de seus pequenos alunos, servindo-lhes de referência.
Habituem-se a ter uma atividade como a hora do conto em suas salas de aula. Não como uma simples recreação, mas como uma tarefa prazerosa que envolve a todos.
Estimulem a discussão, o desenho, o entendimento dos personagens. Estimulem a criação pelos alunos de suas próprias recriações daquela história.
Comemorem o dia do livro com prêmios, palestras, distribuição de passaportes da leitura, troca de livros
Levem seus alunos para conhecerem a Biblioteca Pública de nossa cidade, que possui um acervo muito rico em literatura infantil.
Em classes que já dominam a leitura, proponham pesquisas sobre os escritores de literatura infantil nacionais, regionais e clássicos. As crianças se interessam muito em quem foi a pessoa que escreveu aquele determinado livro, onde ela morava, se tinha filhos, como escrevia, quem o inspirava. A história de vida de um autor é, para a criança, tão interessante quanto a sua obra.
Temos escritores infantis muito bons que moram em nossa cidade, que moram nas cidades vizinhas. Promovam encontros com eles. Marisa Mirras, Dinamara Osses, Dila Bento, Itamara Moura, Stefania Andrade, Val Saab, Rita Elisa Seda, Thais Accioly, Mirian Cristina, Karina Mullert

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Em vista de meu testemunho de vida, eu posso afirmar que a possibilidade da literatura ser ofertada aos nossos pequenos como um alimento vivo, como um alimento para o desenvolvimento saudável de seu psiquismo, não depende de leis. Depende do nosso livre arbítrio, dos nossos valores e nossas crenças, depende de pessoas que invistam no lúdico e no afeto, como formas de tornar o ser humano mais forte e mais sábio.
Bom, e como ir da teoria à prática? Como eu escrevi no Projeto da LIC, a mente humana só raciocina com base naquilo que tem guardado na memória, isto é: com sentidos, entendimentos, conhecimento, enfim, símbolos que ela possui e que traduzem a realidade da vida em seus múltiplos aspectos. São estes símbolos que nos permitem pensar, raciocinar, fazer sinapses, e a literatura, por ser feita deles, a começar pela própria palavra, ela é a essência, ela é o alimento para a nossa mente, para a nossa inteligência.
Como nós, os animais também reagem inteligente e sensivelmente aos estímulos de seu meio. Mas não pensam. Não raciocinam. Falta neles uma característica muito importante das funções mentais, chamada metacognição que é a habilidade de monitorar e controlar memórias e percepções. Eles apenas reagem com fugas ou ataques diante de uma adversidade. Mas, a vida humana não se resume a fuga ou ataque. E, se nos diferenciamos dos animais por pensar, vamos alimentar esse segmento de nossa inteligência. Sem essa alimentação, nós não diminuiremos o número de analfabetos funcionais.
Hoje, segundo reportagem do jornal O Globo, apenas 22% dos alunos que chegam à faculdade tem plena condição de se expressar e compreender o assunto da aula. Outros 42% estariam num grupo intermediário. Mas o que mais preocupa é a constatação de que 32% de nossa elite educacional têm domínios apenas elementares de habilidades de leitura, escrita e realização de cálculos aplicados ao cotidiano, sendo que 4% podem ser chamados de analfabetos funcionais. Esses são dados do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional), realizado pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa, com apoio do Ibope Inteligência.
Em 2017 num universo de 4.725.330, 309 mil estudantes zeraram a redação ( 6,5 % )sendo que apenas 53 estudantes conseguiram a nota máxima.
E o que é esse analfabetismo funcional senão a incapacidade de analisar os fatos apreendidos na realidade? Precisamos pensar seriamente o que acontece de tão errado com as nossas escolas e nossa política educacional.
Por todas essas razões, estimular o hábito da leitura e, antes de tudo, uma ato de amor e de respeito ao ser humano.
E quem melhor do que vocês, mestres, para serem o exemplo de amor, doação, generosidade, fraternidade e conhecimento que esses pequenos seres entregues à sua orientação, terão de lembrança de seu primeiro contato com o saber?
O primeiro mestre que nos cativou, assim como o primeiro beijo, a gente jamais esquece.
27 escritoras de livros infantis Vale do Paraiba Marisa Miras, Dinamara Osses, Dila Bento, Val Saab

28 miriam-cris

29 Rita Elisa Seda e Itamara Moura

30 a Livros de Itamara Moura

30 livro de Rita Elisa seda

GabrielQuintao.com

32 Livro de Karina Muller

33 Stefania Andrade

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    Um pensamento sobre “Palestra na Sala Ariano Suassuna

    1. Amei o texto, Lu, e as fotos da sua infância. E tenho certeza de que foi uma palestra muito estimulante. Parabéns. Um beijo grande.

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