Pertencimento


“Saudade é como fome. Só passa quando se come a presença”

(Clarice Lispector)

O avião pousou em meio à neblina. Mal contendo o pulsar do coração, mergulhei meu olhar naquele colorido rosa tão antigo, quase lilás, que envolve os Andes ao cair da tarde.
Foi quando brotou de mim, bem lá do fundo, aquela vontade de pertencer. Pertencer a um lugar. Ficar para sempre inserida em sua paisagem, feito pedra, feito musgo entranhado em frestas, feito desenho rupestre gravado na rocha bruta.
Vocês já experimentaram este sentimento? O de querer fazer parte de um contexto, sem medo de perder a independência, a liberdade, o norte? O de existir numa perspectiva diametralmente oposta àquele que sempre ocorre quando nos unimos a um outro ser, a um grupo, a uma família? Pertencer a um lugar, como deveríamos pertencer a nós mesmos: por amor, livre arbítrio, fidelidade. Ah, como é difícil esse exercício! Mas, essa reflexão não cabe no espaço reduzido de uma crônica. E nem é esse o objetivo. Voltemos pois, ao avião que pousou em meio à neblina. Era um dia frio de julho e estávamos ali atendendo ao convite de um amigo. B. fazia parte de um círculo de estudos de uma Ordem de Buscadores que se reunia dentro da Cordilheira. Adentrá-la, sentir a vibração das pedras frias, o ar quase materializado trazendo aromas incomuns daquele ventre úmido e escuro…Ah! Que emoção indescritível! Indescritível porque não era o que se via, o que mais importava, e sim o sentimento interno de profunda paz e integração no todo.
A montanha para mim é a mais misteriosa das configurações do elemento terra. Nem o oceano em sua imensidão líquida a supera. Nem a floresta mais densa ou o deserto seco e vazio. Nela, a respiração torna-se mais consciente, os sentidos se aguçam e a voz paira mais tempo no ar, suspensa por uma vibração desconhecida. Não é à toa que homens santos de todas as culturas passaram por experiências incomuns em montes: Receberam tábuas de leis, foram tentados por espíritos, isolaram-se do mundo em cavernas, buscando a iluminação da sabedoria. Construíram monastérios incrustados nas cordilheiras e neles criaram rituais de adoração e reverencia. Quem adentra uma cordilheira, nunca mais retorna o mesmo. Uma fome ancestral o acompanha. Uma fome, que só se ameniza, quando se deglute, lentamente, a lembrança daquela presença .
(Ludmila Saharovsky)

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