Tempo Submerso

Pessoas queridas!
Lanço meu livro Tempo Submerso, a princípio, no Vale do Paraíba, agora nos dias 12 de maio em Jacareí, e em 17 de maio em São José dos Campos. Publico para vocês, a capa e o convite. Ficarei muito feliz em recebê-los e abraçá-los! (Ludmila)

Capa Ludmila_Tempo Submerso

Parte I

Solovietskie Ostrova

Estou absorta na pequena embarcação balançando sobre as ondas do Mar Branco.
O vento intermitente e úmido me fustiga. É verão, mas a temperatura de oito graus me obriga a enterrar a cabeça no gorro de lã grossa e a proteger o rosto com o capuz do sobretudo enquanto observo o ocaso naquela madrugada clara, sob o Círculo Polar Ártico. Uma luz difusa ilumina a noite e a transforma num cenário raro. Mal o sol se põe e já se levanta. Assim, dia e noite não se delimitam, ao contrário, alternam-se, sem o contraste de luz e trevas a que estou acostumada. Este espetáculo me fascina: Noites Brancas.
Percebo que alguém me observa. Viro e vejo, envolta pela neblina, uma mulher que aparenta ter a minha idade. Ela também está só naquele tombadilho. “Vem com os romeiros?”, pergunta. “Não. Não sou peregrina. Venho à procura de meus mortos”, respondo. Ela balança a cabeça num sinal de que entende a razão de eu estar ali. “Mas você não parece russa!”. Sorrio. “E você, vem a passeio?” “Também não. Trago a minha mãe. Ela busca a sepultura de seu pai. Parece que ele foi executado na ilha.” Fitamo-nos, depois, o mar. Assim ficamos em silêncio por algum tempo até ela apontar para uma luz que lentamente se materializava no horizonte: Solovki.
Meu corpo estremece e a emoção me paralisa em meio à neblina que tão pouco revela. O pequeno espaço é tomado pelos viajantes. Todos querem ter a primeira visão reveladora do arquipélago. Mais um pouco e as cúpulas arredondadas e brancas do Monastério Ortodoxo despontam delineando aquele espaço santo, onde sob o domínio dos Bolcheviques, em 1920, instalou-se o primeiro e o mais temido Gulag soviético. Comoção. Algumas mulheres, com lenços coloridos na cabeça, fazem o sinal da cruz. Outras apertam as mãos sobre o peito. Os homens fumam. Pigarreiam. Tiram fotos. O barco balança muito em meio às ondas vigorosas. Há passageiros que passam mal. O capitão abre caminho e joga as grossas cordas para os marujos que já o aguardam no cais. O alvoroço se instala. Cada um se prepara para deixar a embarcação. Atracamos. Olho o relógio. São três horas da manhã. No mastro, o ícone de São Nicolau sobressai em cores fortes. (Ludmila Saharovsky)


    

    Paisagem na neblina

    Que montanha e essa que vejo como se sonhasse, com seus picos sólidos adormecidos na paisagem? Catedral de pedra, recortada no cenário, ela perpetua seu mistério na superfície dos dias. Ser ancestral, moldado em terra, pouco a pouco ela me absorve e aprisiona em seu ventre e me povoa com sua historia de abismos. Nela reencontro a mulher. Ela continua só e me aguarda. Caminha em minha direção, os pés descalços, o corpo silenciado pela quietude dos sentidos, com a cor da desesperança preenchendo o olhar. Mulher outra, mas tão minha conhecida! Observo-a por entre as palavras. Ela é una com as falésias, e eu a ouço e compreendo. Ah! Quero tocar em seus cabelos, pegar entre as minhas as suas mãos, e conduzi-la para além dessas pedras, onde, independente de sua vontade, gestou-se esta paisagem na qual ora me encontro. Talvez eu pudesse fazê-la sorrir, envolve-la com meu carinho, faze-la perceber o frágil equilíbrio entre o passado e o futuro, mas não! Perdi-me dentro de mim, num deserto sem saída que se instalou em minha alma perplexa. E agora, estou aqui, parada, olhando para seu vulto que se reflete nesses espelhos de pedra, hipnotizada por sua presença. Então, a mulher me toma mansamente pela mão e juntas penetramos nesse universo de pedra entalhado na neblina. O tempo abre-se então, numa paisagem de outrora. Sinto o corpo todo estremecido pelas emoções reprimidas. Vomito minha dor, grudada há anos na garganta e grito: Por quê? Por quê? E essa pergunta é a chave que me permite abrir uma passagem em sua alma e penetrar enfim no mistério! Seu rosto desliza pelo tempo, e eu passo a enxergar através de seus olhos, repletos de espanto, a sentir suas emoções, a aguardar, pacientemente, a revelação dos fatos. Observar o sol nascer do mesmo ponto, todas as manhãs, o espaço infinito de água, a sonhada liberdade, a impossível fuga desta ilha de pedra, minúsculo ponto perdido na imensidão do mapa. Olhando para ela, espelhada em mim, eu penso: E agora? O que farei com essa paisagem inscrita também em seu destino? Saberei contar nossa história?
    Ludmila Saharovsky
    (trecho de meu diário escrito em Solovki, em 2003)