Páscoa de antes

naife de Carolina premiado na Bienal(pintura naife de Carolina Migoto, premiada em bienal)

Um ritual de preparativos antecedia sempre a Páscoa, festa mais importante do que a de Natal, na casa de minha infância, entre os avós.
“Morrer, Deus me ajude que seja depois da Páscoa”, comentavam eles, ano após ano. A mesma eterna ladainha…e as Santas Semanas sucediam-se sem mortes na família. Um dia porém, a avó se foi, e o avô também, antes da Páscoa, contrariando seus desejos e todo o planejamento, deixando-me como herança as antigas tradições e uma saudade incontida.
Na quaresma não entrava carne em casa, nem leite, ovos ou manteiga. Era estranho passar-se um tempo ingerindo dieta vegetariana, mas os avós eram severos e intransigentes quando se tratava de leis divinas. Ou seguia-se ao pé da letra o hábito dos primeiros cristãos, ou o castigo viria: líquido e certo! O fato é que, assim, sobrevivemos, fortalecendo corpo e alma. A semana que precedia a esperada comemoração era-me especial em todos os aspectos. Primeiro, as missas noturnas e diárias, nas quais, emocionada, eu acompanhava em capítulos, a história dos últimos dias de Jesus, narrada com voz solene pelo avô, na leitura dos evangelhos: Domingo de Ramos, a ceia entre os apóstolos, a oração no Jardim das Oliveiras, a traição de Judas, o julgamento de Pôncio Pilatos, as negações de Pedro, os passos da Paixão, o desespêro de Verônica, a crucificação e a morte de Jesus e, passados três dias, o milagre de sua Ressureição. Em minha cabeça infantil as imagens formavam-se dramáticas, o coração apertava de angústia e eu me ajoelhava no templo, mal aguentando a dor de tamanha injustiça, as lágrimas pingando sobre o assoalho da velha igreja. “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem!”
Durante o dia, em casa, o alvoroço dos preparativos: as conservas de pepino azedo, tomates e cogumelos; a defumação do arenque, o doce de ricota com passas e favas de baunilha, o pernil, os panetones altos, encimados por casquetes rendados de glacê e confeitos. O ritual do tingimento de ovos era o mais aguardado por mim. Depois de cozido, o ovo era mergulhado em anilinas importadas (verdes, azuis, vermelhas, cor de violeta) e decorado com arabescos, flores, coelhos, igrejas de cúpulas douradas e o que mais a imaginação permitisse. Os mais bonitos eram separados para presentear os amigos. Os outros seriam consumidos pela família durante a ceia. Odores de diversas especiarias ensalivavam-me a boca antecipando o cardápio da mesa farta após a longa abstinência da quaresma. Quantas noites eu adormeci aspirando o cheiro bom de açafrão, extrato de laranja e de favas de baunilha, iguarias importadas que a avó adquiria com economias feitas durante meses. Eram cheiros da sua infância que ela trazia para a minha. O cochilo à tarde era ítem obrigatório para que eu enfrentasse, valentemente, o longo amanhecer do Domingo de Páscoa. Envolvia-me, então, um sono leve e inquieto, interrompido a cada minuto pelo ruído das últimas providências e pelo alvoroço que me invadia a alma: a expectativa da procissão do Senhor morto, iluminada por velas e archotes pelas ruas ao redor do templo, os cânticos fúnebres entoados pelo coral regido por meu pai, o reencontro com velhos amigos da família que me presenteavam com pequenos coelhos feitos de marzipan (da Sonksen) que eu mal via a hora de devorar!
Parece que foi ontem: as lembranças da igreja repleta de flores e fiéis, a veste roxa do avô, que após a meia noite era trocada por uma branca e dourada, as luzes da igreja acendendo-se e iluminando rostos de homens, mulheres e crianças que, abraçando-se festejavam, novamente, o milagre da Ressureição. “Xristos Voskresse!” “Cristo Ressuscitou!” todos repetiam.
Quantas vezes eu me quedei silente no interior do templo, observando a imagem daquele Jesus desamparado, inerte, tombado sobre si mesmo, que tantos pranteavam e, mesmo sabendo o final daquele drama, eu sofria. Jamais compreendi o motivo das religiões escolherem essa sua representação como símbolo do cristianismo, em vez Dele renascido em toda a sua glória. O calvário da dor nos impressiona mais do que o milagre do renascimento? Cresci e prossigo pensando igual. Hoje já não sofro tanto por esse Menino que me apresentaram: que nasceu perseguido, cresceu escondido, sofreu tantas ofensas e morreu na cruz. Cedo intuí que Jesus foi um brilhante inovador de idéias, pelas quais não relutou em dar a própria vida. O filho de Deus que nos disse: “Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei.”
Pena que, tantos séculos passados, sua Via Crucis não nos tenha inspirado!
(Ludmila Saharovsky – crônica publicada no Diário de Jacareí em março de 1997)

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