O sentido normal das palavras

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O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.

(Manoel de Barros, O Guardador de Águas, 1989)

     

    Manoel de Barros

    Há um comportamento de eternidade nos caramujos.
    Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um
    dia inteiro até chegar amanhã.
    O próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos
    caramujos.
    Eles carregam com paciência o início do mundo.
    No geral os caramujos têm uma voz desconformada
    por dentro.
    Talvez porque tenham a boca trôpega.
    Suas verdades podem não ser.
    Desde quando a infância nos praticava na beira do rio
    Nunca mais deixei de saber que esses pequenos
    moluscos
    Ajudam as árvores a crescer.
    E achei que esta história só caberia no impossível.
    Mas não; ela cabe aqui também.

    (Manoel de Barros)

      

      Manoel de Barros

      Lápis
      Manoel de Barros

      É por demais de grande a natureza de Deus.
      Eu queria fazer para mim uma naturezinha
      Particular.
      Tão pequena que coubesse na ponta do meu
      Lápis.
      Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do
      meu quintal.
      No quintal ia nascer um pé de tamarindo apenas
      Para uso dos passarinhos.
      E que as manhãs elaborassem outras aves para
      Compor o azul do céu.
      E se não fosse pedir demais eu queria que no
      Fundo corresse um rio.
      Na verdade, na verdade a coisa mais importante
      Que eu desejava era o rio.
      No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo
      Dia jogar cangapé nas águas correntes.
      Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha
      Particular:
      Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.

        

        Manoel de Barros

        “Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore.
        Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
        No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de
        sol, de céu e de lua mais do que na escola.
        No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo
        mais do que os padres lhes ensinavam no internato.
        Aprendeu com a natureza o perfume de Deus
        seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul
        E descobriu que uma casa vazia de cigarra esquecida
        no tronco das árvores só serve pra poesia.
        No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas.
        Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara,
        envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros
        e tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos.
        Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore
        porque fez amizade com muitas borboletas.”
        Manoel de Barros


        “IV
        No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
        escrito:
        Poesia é quando a tarde está competente para
        Dálias.
        É quando
        Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
        Quando o homem faz sua primeira lagartixa
        É quando um trevo assume a noite
        E um sapo engole as auroras ”
        Manoel de Barros.

        “Prezo insetos mais que aviões.
        Prezo a velocidade
        das tartarugas
        mais que a dos mísseis.
        Tenho em mim
        esse atraso de nascença.
        Eu fui aparelhado
        para gostar de passarinhos.
        Tenho abundância
        de ser feliz por isso.
        Meu quintal
        É maior do que o mundo.”
        Manoel de Barros

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