O orvalho da alegria

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Nestes momentos de melancolia em que a alma pede tréguas ao corpo fatigado, a boca se cala, os olhos perdem-se na linha do horizonte e eu sorvo o silêncio, estancando em mim todo o desejo. Minhas mãos tombam inertes sobre o colo e o coração é um instrumento de argila que ecoa na gruta da carne. Por ele escorre apenas o sangue das horas. Estou inteiramente isolada em meu sepulcro que me defende da agrura indecifrável dos dias. A solidão não me espanta, antes, frutifica-se em letras vivas que brotam sonoras no solo sagrado do poema. Elas, misteriosamente dissipam as trevas e espargem o orvalho da alegria. É preciso abandonar-se, às vezes, no meio do caminho, para retomar a estrada da vida…
(Ludmila com imagem Internet)

    

    Corpo d’água

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    O que posso fazer se me desejas terra?
    Perdão se não possuo a solidez das rochas.
    Perdão se não ostento a pele de carne e musgo
    e nem o doce aroma dos narcisos.
    Sou feita de água e ar. Turbulenta, abissal, salobra,
    onde a lua banha suas faces e o sol desponta.
    Esta sou eu: crio cardumes nas entranhas
    e deflagro os naufrágios.
    E te digo mais:
    Tudo que é líquido é misterioso e fecundo
    pois é a água que sustenta o mundo.

    (Ludmila com imagem da Internet)

      

      Contos mínimos: O ritual

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      O ritual demandava cuidados minuciosos. A água da chuva, recolhida por dias, aguardava no balde recoberto por um pano de filó. A bacia, ariada múltiplas vezes, reluzia à luz do sol. Alcançado o volume preciso, à noite, céu refletido na bacia, ela podia, finalmente, tocar a lua com as próprias mãos. (Ludmila)Imagem Internet

        

        Infinitos os caminhos para meus passos

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        Infinitos os caminhos
        para meus passos:
        Ruas estreitas, morros, penhascos
        E lá o horizonte inatingível
        a acenar-me da Eternidade.
        Busco as alturas, a alma solta ao vento
        Alma falcão, alma gaivota em voo livre
        Sobre o interminável oceano/tempo.
        Alma desejo de tocar-te , oh mundo!
        Alma antiga a fecundar-te, oh corpo!
        Alma imortal, mas sempre adormecida
        sob a pedra do desejo
        da ilusão da vida.
        (Ludmila, em fevereiro de 2018, com ilustração da Internet)

          

          Quaresma.

          Tibouchina_grandiflora1Na tradição ortodoxa, que eu seguia na minha infância, a quaresma era um teatro, no qual nós, por vezes espectadores, por vezes atores, nos preparávamos para dois atos, sobejamente conhecidos e sempre repetidos e celebrados: O horror da traição e morte de Jesus, e a sua ressurreição, num claro simbolismo de que a morte é feito o casulo do qual a larva se liberta e recomeça a vida como ser alado.
          Os 40 dias que antecediam ao clímax deste drama, celebrado na Semana Santa, nos preparavam, anualmente, para nos interiorizarmos e fazermos um exame de consciência sobre as nossas transgressões, tão humanas e por isso mesmo, tão repetidas. O corpo precisava ficar mais leve. E a alma idem. A carne vermelha era abolida do cardápio. E a branca também, pelos mais radicais. Peixe era permitido, mas apenas às sextas feiras.
          Na quaresma não se ligava a televisão. Quando muito se permitia ouvir música clássica, em especial a obra sinfônica de Rimski-Korsakov “A grande Páscoa russa” que é linda”. Aliás, tem muito tempo que não a ouço…
          Os lampadários de frente aos ícones permaneciam acesos dia e noite, vivificando a mancha amarelada do teto, com sua tênue fuligem, enquanto o avô se entregava à leitura dos evangelistas com a família reunida para ouvir, se emocionar e pedir perdão a Deus, em silêncio, pelos pecados cometidos.
          A cada liturgia dominical, os fiéis também pediam perdão, uns aos outros, por qualquer falta voluntária ou involuntária, antes de receberem a comunhão. E o sacerdote , do púlpito, repetia a máxima do “amai-vos uns aos outros” antes do início dos sermões.
          Depois da Páscoa, a vida seguia seu ritmo natural, mas todos se sentiam melhor para mergulhar na rotina e nas pequenas e grandes transgressões, até a próxima quaresma.
          Cresci e me afastei das celebrações da igreja dos meus, mas as sementes de devoção e sacralidade que aconteceram nos templos de minha infância, seguem para sempre em meu coração. Que meu corpo seja o templo vivo para o espírito que o habita.
          A cada quaresma eu me preparo para me libertar desta casca que me envolve, deste sudário de sangue e ossos para voar, momentaneamente, rumo à Ressurreição, que, quem sabe um dia alcance a mim também, neste palco da vida no qual atuamos, cada qual interpretando o seu papel. Que assim seja e assim se faça. Amém. (Ludmila) imagem Internet

            

            Vaso de lata, flor de jasmin

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            Na minha infância na Aldeia de Carapicuiba, qualquer coisa que se movesse virava distração. Virava brinquedo vivo. Os alevinos do riachinho apanhados na palma das mãos e criados em potes de vidro, eram devolvidos ao seu habitat após algumas semanas ou meses, quando outros eram capturados e a brincadeira prosseguia. Ganhava quem os mantivesse maior tempo vivos.
            As joaninhas faceiras (só valiam as de roupa vermelha) eram capturadas no jardim e plantadas em casa em vasinhos de jasmins e onze horas que cresciam viçosas em latas de Cera Parquetina, Óleo Corcovado abertas na horizontal, Gordura de Coco Carioca ou ainda alguma rara e cobiçada lata de Toddy, saúde e energia, que só os vizinhos mais abastados conseguiam comprar.
            As formigas seguidas por horas pelas trilhas do quintal e ampliadas pelas lentes de aumento do avô, constituíram as minhas primeiras experiências com microscópio, desvendando seus corpos articulados e ferrões que às vezes me feriam.
            Até as dálias plantadas nos canteiros se moviam. Eu as retirava periodicamente da terra fofa para observar a alongamento de raízes e as minhocas nervosas se contorcendo sob a luz do sol.
            Os besouros unicórnios eram uma distração à parte. Capturados ao entardecer eram transformados em insetos de carga quando recebiam as caixinhas vazias de fósforos atadas com linhas finas de costura às reentrâncias de seus corpos alados. A brincadeira durava até que eles, cansados, abrissem suas pequenas asas e escapassem do trabalho escravo.
            As galinhas poedeiras, presentes em todos os quintais nos encantavam com as descobertas de anatomia. Como por milagre, os ovos galados criavam os embriões, que podiam ser admirados contra a luz do sol, e, semanas depois surgiam os pintinhos, alegria de toda a criançada.
            Ah! E havia também os cães e gatos. Nunca se via os bichos abandonados pelas ruas, esqueléticos, feridos e famintos. Logo eram adotados e se transformavam em membros da família. Pulguentos, alguns, é certo, mas felizes da mesma forma. As cadelas prenhas tinham os filhotes adotados já durante a gravidez e distribuídos pela vizinhança após o desmame. Raros os de raça pura. A maioria mais querida eram todos vira latas que corriam atrás dos gatos pela vila afora. Pela vida afora.
            Assim cresci, numa pobreza franciscana de imigrantes recém chegados ao Brasil, mas minha infância foi um território riquíssimo de alegria e divertimento. E assim foi esse tempo retido na memória. (Ludmila)
            Em Cem crônicas escolhidas e alguns contos clandestinos a ser lançado em breve.
            Foto Internet

              

              Submerged Time

              SOLOVKI

              “I walk by the majestic cathedral built of rough stone and my soul cannot give up. Where is the salvation? Where is the time to retreat, to destroy that moment of admitted madness, feelings of numbness? Where to desperately seek for a love equal to infinity, or simply sharing the calm sunshine, the warmth of the fire, the blessing of the bread and water? From distance, the water of the Saint Lagoon is a deep cobalt blue, and it calls me, and tempts me … Come!

              Then I allow myself to slide to the bottom of it, to that ancestral deepness where the night viscously prowls me, where dragons and serpents haunt me, where there are mistletoe and a deep pain that prevents me from breathing. There are so many moans. So much regret. And bones that disintegrate, and fibers that dissolve, and dull days, dull as the words that accumulate and decompose. I walk, little by little, on its muddy bottom: Persephone descending into hell to be reborn, but only death surrounds me and touches me with its icy fingers of algae. I cross nebulous spaces, where the spirals of time no longer leave their impression. Faces only, just faces intertwine in front of me. Faces which already are only memories. An irregular memory guarding within itself an accumulated time, not lived to its fullest, not exhausted, and before, aborted. A space for escape opens over my eyes: a chink of sky behind the clouds, and the sound of the bells. I let it lead me. The sound grows, grows and involves me; I walk back down the dirt street and I see two children holding hands. I approach them, and before they ask for bread, I kneel, and I involve them with my love, and only then I can absolve myself.”(Excerpt from the book of Ludmila Submerged Time)

                  

                O OVO

                Lud vista por Paul

                Escrever é como tecer. É trabalho feito em tear sem que nos forneçam o esquema do desenho, o padrão a se seguir na tessitura.
                Palavras como fios correm soltas pelas linhas, unem-se aos nós dos verbos, a adjetivos, a pronomes. Vez por outra o escritor se embaraça num pensamento e ao tentar desvencilhar-se se surpreende com novos pontos que atiçam sua criatividade: surgem na escrita, então, sonhos, emoções, fragmentos de memórias que o levam a outros vocábulos, aforismas e o assunto muda radicalmente de abordagem. Ele cria novas frases, associa ideias, arremata com reticências ou uma afirmação e ao reler a frase toda comemora a conquista: afinal conseguiu expor de forma clara o pensamento!
                Curiosamente às vezes ocorre também o contrário. Olha-se para o texto-tecido e a sensação é a de que não era bem aquele produto final que se tinha em mente. Então só nos resta desmanchar tudo e reiniciar a obra.
                Propor-se a criar algo, seguir o fluxo da inspiração e transformá-lo num desenho, numa escultura, num tapete ou num texto iguala-se ao exercício de dar à luz. Esta necessidade que possuímos de perpetuar-nos no mundo é diretamente proporcional ao medo que temos de nossa finitude. Carregamos em nós este ovo latente de possibilidades criativas que precisamos conceber. Esta afirmação me leva a um sonho que tive e que quero lhes contar:
                Sonhei que estava imersa na água e dela saía vagarosamente carregando em minhas mãos em concha um ovo. Sua casca era uma membrana translúcida e firme. Uma delicadeza, iluminada por luz interna. Em seu interior estava uma jovem mulher em posição fetal. Ela me olhava com olhos desproporcionalmente grandes e eu a carregava com todo o cuidado. No trajeto tentava descobrir quem era a criatura e como o ovo foi parar em minhas mãos. Não me lembrava de tê-lo expelido, mas sentia que ele, de algum modo me pertencia.
                Repentinamente eu tropecei e caí. Do interior da membrana rompida um ser alado precipitou-se para o espaço. Mas não! Não era a mesma mulher que eu carregava. Era um pássaro feito de luz e transparências. Talvez um anjo? E dentro de si carregava um ovo perfeito, concluído.
                “Parir uma mulher é gravidez de alto risco”, ele me disse “A mulher tem mãos que levam direto ao coração e são capazes de desatar nós, qualquer que seja a tessitura”.
                Nem tive nem tempo de me assustar.
                Eu observei aquele ser dissipar-se no horizonte. E preenchida por essas sensações eu despertei.
                Que sonho estranho, vocês dirão. Mas, mais estanho ainda é esta necessidade que senti de torná-lo publico. De partilhá-lo com vocês que, no mínimo devem estar pensando aí com seus botões: “Mas isto é crônica que se escreva”?
                Por que não, se a inspiração é sempre uma aventura?

                Crônica de meu próximo livro “Cem crônicas escolhidas e alguns contos clandestino” que será lançado brevemente e foto de Paul Constantinides para a contracapa.

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