A Virgem e a serpente

Dragão

Esta história da serpente que quase comeu nossa cidade, não foi inventada por mim não. Ela foi ouvida por um menino que cresceu e cresceu tanto, que se transformou num senhor de cabelos muito brancos, conhecido pelo nome de Odilon. E ele contou para mim. Então eu a guardei, bem guardadinha, na minha cabeça, e agora vou recontá-la a vocês:
Era uma vez, há muito, muito tempo, um lugar calmo, uma vila tranquila, que era cortada por um caudaloso rio.
Moravam nele muitos peixes, garças, capivaras e, contam os antigos, também muitos jacarés. Crianças brincavam em suas margens. Lavadeiras ensaboavam roupas, homens cuidavam de ceveiros, e a vida corria, devagar.
Parayba era o rio. Jacarehy a vila.
Bem, até aqui, este seria um lugar igual a muitos outros espalhados por esse extenso vale, não fosse uma cobra imensa que nele morava e que às vezes, despertava. Alguns diziam que era cobra. Outros, que era um dragão!
E nossa estória começa exatamente agora: Eis que acorda o bichão!
E ele desperta nada discreto, e, com seu bocejo forte igual trovão, o pânico se instala:
Os negros se benzem, as crianças correm, voam roupas e bacias, as mulheres gritam e a vila calma se transforma em confusão. A serpente acordou faminta e começa a devorar o que lhe aparece pela frente: roças, canoas, barrancos, animais.
Os senhores assustados, ordenam a seus escravos que dia e noite lhe joguem alimentos, mas nada aplaca sua fome! Também, para manter aquele corpanzil! Imaginem que a cabeça do bicho saiu da água lá perto da Matriz , enquanto a cauda ocupou o rio até a distante vila da Freguesia da Escada.
De nada valem cercas, pedras, altos muros. De nada valem promessas, nem orações! As pobres casas ribeirinhas já se foram. Também se foram os pomares, as roças, os portões!
A vila, agora, é só água, é só barranco… e, logo, logo, sua bocarra já alcança a Igreja da Matriz. Preocupados agora também com a segurança de seus santos, de seus mortos na Igreja enterrados, resolveram os moradores apelar pra muita reza e procissão. Quem sabe a Virgem Padroeira consegue acalmar o apetite secular da fera? E juntos, lançam às águas a Imagem Santa.
A noite, aos poucos se transforma em madrugada e amanhece um novo dia, um dia diferente: A vila está envol¬vida por um lindo acalanto. A Virgem, sob as águas, canta para o dragão ouvir, e este, embevecido, segue seu canto doce, e eles se afastam pelo rio afora.
Os dias passam. Passam semanas, voam meses.
O rio é desviado de perto da Matriz e corre agora, calmo e livre, em seu novo leito.
A vida do lugar se normaliza. Bem pouco ouve-se falar sobre a serpente, sobre o dragão, que rumo ao Norte, apaixonado, segue a cantoria.
Ele esqueceu-se de comer. Também não bebe mais, não dorme, não repousa. Sente sequer que a cauda já se transforma em rio. Só sabe ouvir a voz da Virgem, enquanto o dorso, as patas, a barriga se desfazem na água.
Mais um instante, e a doce voz também se cala. Seu corpo fatigado tomba inerte, no leito do caudaloso rio. Mas, por pouco tempo. Lá está a rede, dos pescadores, que a envolve mansa, e ela, agora Aparecida , vai cuidar de todos, depositada no nicho de um outro altar.
Ludmila Saharovsky
(Historia publicada em 1978, com ilustração de Justino, para o jornal O Jacareiense)

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