Esse mistério que é a vida!

Hoje, olhando para minha romãzeira anã que começa a brotar depois da poda de inverno, penso na memória da Natureza, penso no milagre da Vida, penso nessa Energia que tudo permeia e preenche com sua vitalidade, e que entendo, agora, como Deus. Penso em quão foi doloroso meu esforço, durante a vida inteira, para aprender a encontrá-lo nas pequeninas coisas, uma vez que sua grandeza é impossível de compreender e de questionar.
“E preciso esquecer os nomes de Deus que as religiões inventaram, para encontrá-lo, sem nome, no assombro da Vida” escreveu Rubem Alves.
Sim, como encontrar Deus aprisionado em gaiolas de doutrinas, seitas, religiões criadas e recriadas pelos homens à sua própria imagem e necessidades, que, desde que nos tornamos conscientes, mais tememos do que amamos?
Hoje, depois de peregrinar por tantas filosofias, finalmente, encontrei-O na beleza e na poesia, passeando comigo pelo jardim, emocionando-se com a magia do tempo, com a sabedoria das estações, com a eternidade das estrelas, com o amoroso pulsar do universo! Que a primavera renasça em nós mais uma vez! (Ludmila)

“No mistério do Sem-Fim
Equilibra-se um planeta
No planeta, um jardim
No jardim um canteiro
No canteiro uma violeta
E na violeta,
Entre o mistério do Sem-Fim e o planeta
O dia inteiro,
A asa de uma borboleta” (Cecília Meireles)

Na Rússia, nas florestas, o muguet, lá conhecido como “landesh” é a primeira plantinha a brotar do chão ainda coberto em algumas partes, pelo degelo da neve, prenunciando a primavera. É indizível a emoção que nos toma perante a sua fragilidade e beleza. Dizem que o “landesh” é um ramo da sorte. Recebam, pois, esse virtual, que lhes ofereço. (L.)

    

    Os dias ao sabor das palavras

    (imagem Internet)

    Sento-me à mesa da cozinha e escrevo.
    Escrevo em folhas soltas de papel. Escrevo a lápis. A grossa e macia grafite 4B expõe-me a mim mesma. Olho para minha caligrafia e só então me reconheço.
    O teclado frio do computador é imoral! Não há rabiscos em sua escrita cirúrgica. Nem a possibilidade de idas e vindas. Apagou? Sinto muito…recomece! Esqueceu? Fazer o que…crie outras alternativas. A idéia, solta, não se recaptura!
    A cumplicidade do papel é outra! Nele existe o dom da absorção de lágrimas. Há também o bordado das manchas circulares de copos de café ou chá acendendo memórias de outras serventias da mesa. No papel ocorre o reconhecimento do melhor e do pior da escrita: os erros revelados, as concordâncias esquecidas, os esses trocados.
    As palavras materializando-se através dos dedos, nesse bordado tão pessoal da letra, impõem um triângulo amoroso do qual faço parte: eu, a escrita e o sonho vivenciamos enredos sempre possíveis de um final feliz… ou abertos à floração de feridas expostas ao tempo.
    Sento-me à mesa da cozinha e escrevo. Enquanto as panelas fervem, enquanto o sol desponta tímido no céu desse início de primavera, enquanto o relógio mecânico marca a passagem das horas, enquanto o tempo, indiferente à minha dor ou deslumbramento, passa…
    Sento-me à mesa da cozinha e escrevo e as palavras envolvem-me com sua tessitura de letras, frases, histórias, poemas e fazem com que a vida, demasiadamente curta e rotineira, valha a pena.
    Sento-me à mesa da cozinha e escrevo, e a escrita abre portas, desvenda quartos, indica corredores, leva a jardins secretos. Revela aromas, cores, gritos, risos, confidências presas entre as paredes do inconsciente. E me revela.
    (Ludmila)

      

      As faces secretas da palavra


      (foto Paul Von Borax)

      Olhar de fotossíntese

      “Chega mais perto e contempla as palavras, cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta,
      sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres:
      Trouxeste a chave?”
      (Carlos Drummond de Andrade)

      Como escrever sobre sentimentos que não podem expressar-se em palavras? Revelar este momento único de espera, quando aguardo por algo que eu só pressinto, mas não qualifiquei ainda, então, nem rego para que cresça, e nem o arranco de vez de mim, mesmo correndo o risco de que poderá tornar-se erva daninha, e colocar todas as tênues memórias a perder…Como plasmar o meu sagrado em palavras, sem contaminá-lo por este vácuo de incertezas no qual mergulho, sentada à mesma mesa de refeições, onde tantas vezes elaborei textos que tremula te remetia? Ah, esta esperança contínua de que os lesses com outros olhos e descobrisses, finalmente, a chave que eu te enviava de acesso ao meu jardim secreto, onde florescem tantas emoções? Curvo-me sobre mim mesma, como se, através do gesto de retornar à posição fetal, me fosse possível um novo renascer. Como se, desta maneira, eu conseguisse destruir o passado, e houvesse a simples promessa de que, a partir de então, meu destino pudesse tecer-se de maneira diferente. Observo toda a vida que passou por nós, em meio a estas palavras com que tento, agora, te remover de mim. Revejo nos teus olhos quase negros um abismo que me fascina e atormenta. Tu me olhas, sempre, através de mim. Através de meu corpo. Através de minha vontade. Através de meus pensamentos. Através do tempo, que gira, gira e, em círculos, retorna. Pegas na folha escrita que te entrego e lês o conteúdo com sincera atenção. Dizes: Este teu texto é muito bom. Eu gosto. E eu fico observando, muda, como teus olhos se contraem quando mudam de foco e me fitam. Então, para que não corras o risco de penetrar-me mais, começas a narrar-me os últimos livros que leste, as cidades que visitaste, teu lar, amigos. Falas de teu pai, irmãos e pessoas que habitam teu presente. E eu absorvo em mim cada palavra, tentando perceber outras frases dentro das que me dizes. Adivinhar porque me escolheste para tuas confidências, que ouço com o coração, pois me emocionam sempre tuas histórias.Talvez eu pudesse interromper-te, como se fosses um menino ainda, e ordenar-te que me enovelasses também em teu destino, para que eu pudesse dele partilhar.Covarde, no entanto, apenas imagino as coisas que poderia te dizer…
      Perguntar, por exemplo, se percebes o rubor que me tinge as faces, sempre que me fitas. Colocar, se também sentes o vazio desta cidade, quando não estamos juntos… Se imaginas como te sigo em pensamentos por todos os lugares em que vais, quando de mim te ausentas…Se me intuis, incendiada pela memória do toque de teus dedos em minha pele, mesmo tendo a certeza, que sempre, sem outras intenções. Ah…e insistes tanto em nada conhecer de mim, nem o que te mostro, apressada, nestes breves textos, como se, ao ler-me tu corresses o risco de, de repente, transformar-te e te perder deste que és… Assim, nada queres saber das feridas, do deserto, de minha alma rasgada e dividida entre dois mundos, de minhas emoções sempre à flor da pele, e que vou aprendendo a disfarçar com este olhar transverso com que te fito. Um olhar, que um dia classificaste, como de fotossíntese…enquanto me devolvias a chave de acesso às palavras.
      (Ludmila Saharovsky)

        

        Receita de mãe


        (Bella Swan e seu bebê, da saga de Crepúsculo)

        Receita de mãe

        Colha uma mulher e acrescente:
        Duzentos e setenta dias de espera. Espera demorada, arcada, de um corpo que lentamente se avoluma, mais:
        As dores do tal parto “sem dor”, o grito e o clarão da vida, mais:
        O alívio dos vinte dedos conferidos um a um, da boca, nariz, olhos perfeitos; a certeza do choro, da placenta eliminada, do ventre flácido, das múltiplas estrias, mais:
        As flores recebidas, os parentes, os presentes, a canja, os lençóis, o cheiro de hospital, mais:
        Os seios inchados de leite, mamilos rachados pela voracidade da sucção, a breve paz da fome saciada, as cólicas, a delicada moleira, a cicatriz do umbigo protegida no primeiro banho, mais:
        As madrugadas insones, noites e dias agitados no rodízio interminável de fraldas com cocos e xixis, os livros de pediatria na cabeceira da cama, as infindáveis dores de barriga e de ouvido; os chás de ervas, os azeites quentes, os palpites, as mamadeiras, os sucos, as papas, os caldos e rescaldos, mais:
        O primeiro sorriso, os primeiros dentes, os primeiros passos, as primeiras palavras, o primeiro monumental, incrível, assustador tombo do berço, mais:
        Os galos, o dedo na tomada ,o feijão no nariz, os pontos na testa, mais:
        As aulas de escovar os dentes, de bem comer com a colher, de não fazer pipi nas calças; e os tapetes regados e lençóis molhados e travesseiros ao sol, mais:
        Os riscos de lápis nas paredes brancas, os borrões, as manhas, as birras, as pequenas mal criações, a bola na vidraça, os passeios, a gangorra, o balanço, as mil fotografias nas mais inusitadas poses, mais:
        A perua da escola, a dolorosa separação, as lágrimas incontidas, a lancheira, as tranqueiras, os besouros guardados no bolso do pijama, o tênis perdido, as cutículas em franja, o chiclete grudado embaixo da cama esperando o novo dia, mais:
        As sabatinas, os deveres, as pesquisas, os cartazes, o sonho, o pesadelo, a primeira calça comprida, o primeiro sapato alto, o primeiro baile, as boas companhias…e as más, mais:
        As cólicas menstruais, as revistas de sacanagem, a mesada sempre curta, a garota do vizinho, o garoto da vizinha, a puberdade, a impertinência, a adolescência, mais:
        As noites novamente insones, o barulho do carro na garagem, da abençoada chave na fechadura, o primeiro romance sério, a primeira desilusão, as primeiras lágrimas engolidas de paixão, a camisinha na gaveta do criado, a caixa de anticoncepcionais, as explicações não dadas, os carinhos nem sempre devolvidos, os beijos de bom dia esquecidos, e mais:
        A eterna incompreensão entre gerações, a incompreensão eterna, eternamente repetida e perdoada.
        Essa a tradicional receita de mãe!
        Já experimentaram? Certamente…
        Então, um feliz dia das mães para todas nós!

        (Ludmila Saharovsky, crônica publicada pela primeira vez em maio de 1972 no jornal Diário de Jacareí)

        PS. Meu filho caçula estava para nascer. Hoje, sua filha Lórien, minha neta, tem 1 ano e dois meses, e a receita se repete sem quaisquer variações…

          

          Mamães, signos e presentes

          Há alguns anos, a pedido de uma revista, eu fiz essa brincadeira de sugerir presentes para as mães, de acordo com o signo astrológico de cada uma.
          Hoje, aproveitando a proximidade desse dia, eu a transcrevo para vocês:

          Áries ( 21 de março a 20 de abril)
          Sob a regência deste signo, encontram-se mamães pioneiras, impulsivas, independentes e dinâmicas que certamente ficarão muito felizes se forem presenteadas, por exemplo, com um roteiro secreto para alguma praia exótica, onde poderão descobrir sempre novas e inexploradas trilhas, bem a seu gosto. Um kit de primeiros socorros, será muito apreciado e certamente bastante utilizado, pois na pressa…. Outras sugestões ( mochilas, ferramentas de jardinagem, bússolas, marca passos para as caminhadas)

          Touro (21 de abril a 20 de maio)
          Pacientes, sensuais, práticas, artísticas e gulosas, as mamães taurinas curtirão uma cesta de café da manhã contendo comidinhas variadas, sucos cítricos e florais e trufas recheadas de marzipan, envoltas em papéis com texturas fosforescente. Uma tela pintada com as cores do carinho também será muito apreciada. Outras sugestões: ( bandeja para servir comidinhas na cama, moedores de sal e pimenta, kit de óleos e cremes aromáticos pós banho)

          Gêmeos (21 de maio a 20 de junho)
          Curiosas, expressivas, literárias, inquietas, inteligentes, as mamães deste signo merecem um presente especial: livros garimpados num bom sebo, de preferência com dedicatória, que lhes permitirão enveredar por mil caminhos, imaginar mil cenários e vivenciar as mais distintas personalidades. Outras sugestões ( lapiseira e cadernos de papel reciclado, dicionário etimológico da língua portuguesa, ingresso para peça de teatro com direito a esticada num restaurante japonês)

          Câncer (21 de junho a 21 de julho)
          Sensíveis, maternais, domésticas e intuitivas, estas mamães jamais se esquecerão se forem acordadas pela manhã com uma bela canção composta exclusivamente para elas, com os versos envoltos em tule verde água, arrematados por um laço nacarado e uma lua de marfim. Outras sugestões ( fita remasterizada de E o vento levou…. um bonsai de romã para ser cuidado, chinelos de lã de carneiro e meias de cashemir)

          Leãoo (22 de julho a 22 de agosto)
          Dramáticas, orgulhosas, românticas, idealistas, as nascidas em leão ficarão encantadas se forem presenteadas com um passeio de trem pelas montanhas, com direito a todos os sustos na subida, todas as compras nas paradas e todos os sonhos no quarto daquela pousada com lareira e vinho tinto seco até o dia clarear….. Outras sugestões (espelho de cristal bizotado, perfume Paloma Picasso, próprio para os dias de inverno, uma foto sua, encomendada a uma excelente fotógrafa (a Edna Médici eu recomendo…), num porta retratos de aço escovado)

          Virgem (23 de agosto a 22 de setembro)
          Estudiosas, metódicas, perfeccionistas, práticas, atentas à higiene e à saúde as mamães deste signo poderão ser surpreendidas por uma bela massagem executada com óleos aromáticos, no melhor estilo shiatsu, acompanhada por um fumegante chá de ervas adoçado com aquele mel perfumado de flores silvestres, para relaxar…Hum….Outras opções (uma porta retratos eletrônico, óculos para neblina, um aromatizador, estojo de prata porta cartões de visita)

          Libra (23 de setembro a 22 de outubro)
          Cooperativas, refinadas, sociáveis, pacíficas, as librianas adorarão passar seu dia em harmonia com a natureza: uma cesta de piquenique, com vinho de boa safra, nozes, amêndoas, frutas e frutos da imaginação dispostos sobre toalha de biquinhos de renda sob a sombra de uma mangueira….Outras sugestões ( jogo de xadrez, ou gamão em caixa de madeira entalhada, um colar de pérolas de água doce, uma garrafa de excelente Vinho do porto com taças de cristal)

          Escorpião (23 de outubro a 21 de novembro)
          Determinadas, intensas, sensuais, investigativas, penetrantes, as mamãe do signo de escorpião necessitam de fortes emoções. Que tal presenteá-los com um salto de paraglider sobre o Mar, ou sobre a Serra? Ah.. nada como o espaço aberto e a sensação de deixar-se flutuar no universo… Outras opções ( Edição ilustrada do livro Kama Sutra, kit de óleos aromáticos, esponjas e espumas de banho, livro I Ching com jogo de varetas, sinos de vento )

          Sagitário (22 de novembro a a 21 de dezembro)
          Tolerantes, atléticas, generosas, filosóficas, justas…estão sempre atirando suas flechas mirando o futuro! Como não presenteá-las com uma assinatura de excelentes revistas temáticas (moda, decoração, saúde e bem estar) ou proporcionar-lhes um incrível fim de semana num spa entre as montanhas? Outras sugestões (uma luneta para perscrutar o céu noturno, aquela valise maravilhosa de couro molinho onde cabe o mundo, uma coleção de canetas tinteiro)

          Capricórnio (22 de dezembro a 20 de janeiro)
          Cautelosas, responsáveis, convencionais, tradicionais e práticas, essas mamães merecem uma coleção de objetos de primeira necessidade para sobreviverem neste planeta: terra com húmus para cultivar raros bonzais, travesseiros de marcela para acomodar melhor as preocupações intermináveis, uma agenda de folhas recicladas repletas de pensamentos Socráticos. Outras sugestões ( Uma garrafa de um bom Vinho do Porto, uma coleção de CDs com música clássica, lanterna ou lâmpada que se aciona automaticamente na falta de luz. )

          Aquário (21 de janeiro a 19 de fevereiro)
          Independentes, inventivas, progressistas e fraternas, as mamães deste signo irão vibrar com tudo que excite sua imaginação: Um exército de formigas, uma revoada de anjos e arcanjos, um pomar de árvores cultivadoras de desejos, um arco-íris com direito a escorregar sobre todas as cores, uma de cada vez até esgotar todos os nuances… Ou ainda ( Mapa Natal e de Revolução Solar, encomendados a um astrólogo de confiança, livro de receitas: “O cinema vai à mesa”, cafeteira italiana com moedor de grãos)

          Peixes (20 de fevereiro a 20 de março)
          Compassivas, intuitivas, introspectivas, compreensivas e com espírito de sacrifício, as mamães piscianas encerram o círculo zodiacal com o elemento água. Para eles, lagos e riachos. Ninfas e fadas em finas gaiolas de veludo ou cetim. Peixes dourados sustentados por nuvens fofas e um sopro dos bosques de Viena. Ou também ( um roupão bem felpudo pós banho, um aquário redondinho com um beta macho vermelho sangue, um abajour com água e óleo que forma desenhos quando se aquece, para viajar no quarto ou na sala)

          Agora, se acharem difíceis estas sugestões ( e isto vale para mamães de todos os signos e idades) procurem por um trevinho de quatro folhas, (não valem esses em vasos de floricultura) coloquem entre papeis de seda lilás e imantem com suas melhores vibrações de sorte, saúde, alegria, paz e amor…selem com um beijo reconhecido…e aguardem os agradecimentos! Eu adoraria ganhar este presente! Vocês não?

          Feliz Dia das Mães para todas nós!
          Ludmila Saharovsky

            

            Páscoa




            (ovos de madeira pintados “pisanki”)

            Confesso! Há épocas do ano em que me sinto muito antiga. Fico como que desfocada, totalmente excluída desta realidade que me envolve.Tento mergulhar na rapidez do tempo presente, na evolução humana, cada vez mais consumista, mas algo me arrasta inexoravelmente ao passado. É feito uma nostalgia: Uma saudade que surge devagarinho e quando me dou conta, ela já se instalou e pronto: Entro no túnel do tempo e regresso à minha infância! E é sempre durante a Semana Santa que tenho as piores recaídas. Esse período chega despertando em mim uma solenidade, uma seriedade, um mistério que hoje não mais se vivenciam. No antigamente, tudo ficava severo, vagaroso e triste nestes dias. O martírio de Jesus refletia-se nos lugares, pessoas e costumes. O silêncio era mais denso, o luto materializado. Eu e minha família assistíamos à missa todas as noites, no monastério ortodoxo de Vila Alpina. Ouvir a leitura dos evangelhos no templo aconchegante iluminado apenas pela luz de velas, o insenso acalmando os sentidos, resultava num consolo mágico à alma dos que acompanhavam o drama da traição. Aquela, perpetrada por um dos discípulos queridos do Mestre e a negação, por três vezes, de outro. O julgamento de Poncio Pilatos, lavando as mãos num gesto que o eximia de qualquer culpa, a Via Crucies percorrida sob o peso da cruz e chibatadas, o terror da crucificação, do coroamento com espinhos eram novamente vivenciados por nós. A noite surgindo em pleno dia sobre o Gólgota, a cortina do templo rasgando-se de alto a baixo, a lança perfurando as vértebras, a descida do corpo morto, o sudário. A pesada pedra selando o sepulcro. Esse enredo permeava de angústia meu coração que doía e se apertava em nó no peito, por tantas crueldades perpetradas contra um inocente. Os aparelhos de rádio e de TV. permaneciam desligados na maioria das casas. O máximo que se permitia era assistir aos filmes bíblicos, reprisados a cada ano, com Débora Kerr, Victor Mature, Charlton Heston, Jean Simmons, sobre a Paixão. Paixão de Cristo. Carne não se consumia, e não apenas na Sexta-Feira Santa, mas durante toda a semana. Os mais devotos passavam sem ingerí-la, a quaresma inteira. Finalmente, para o alívio dos fiéis, chegava o Sábado de Aleluia: Jesus estava prestes a ressuscitar, e, pelas ruas dos bairros procedia-se a malhação do Judas.Pobre Judas! Em inúmeros postes ele era amarrado e espancado até a completa destruição, quando as palhas soltavam-se de suas entranhas de trapos. Que ritual! Parecia que, espancando o delator com as próprias mãos, finalmente a justiça era feita! Absolutamente ninguém se lembrava do “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” que o próprio torturado suplicara naquela longínqua época. Mas, o mistério dos mistérios, para mim, eram os ovos de coelho. Eles surgiam multicoloridos, em ninhos, na maioria das casas, como por encanto. Nunca conseguiram explicar-me, que relação havia entre ovos de chocolate e a Ressurreição. E de coelhos ovíparos, ainda por cima! Recentemente, li que esta tradição é celta, e liga-se a Eostre, deusa da vegetação e do renascimento.Mas, a quem, realmente, isto hoje interessa? Vivemos um tempo em que mistérios caíram em desuso. Como toda a tradição desta dolorosa Via Crucies que um dia nos redimiu…(Ludmila Saharovsky, crônica publicada no Jornal Valeparaibano)

              

              Domingo de Ramos


              Hoje é Domingo de Ramos.
              Lá longe, em minha infância, a missa no Monastério Ortodoxo de Vila Alpina era tão festiva! A igreja toda florida. Os fiéis traziam ramos de plantas enfeitados com flores e fitas para serem abençoados com água benta e levados para casa, para ficarem junto aos ícones o ano inteiro, protegendo o lar.
              Num domingo há dois mil anos, Jesus entrou festivamente em Jerusalém para, depois de poucos dias ser traído, julgado e crucificado junto a dois ladrões.
              A semana que seguirá será de trevas. Panos escuros nos altares, procissões, jejuns, penitências. Depois, a Malhação de Judas. Pobre Judas. Hoje pairam dúvidas sobre a veracidade de seu ato.Ele vendeu mesmo seu mestre por algumas moedas, para entrar na história como um proscrito?
              Mudou o mundo, mudaram os heróis, mudamos nós!
              Já longe vai-se o tempo em que os carpinteiros aplainavam madeiras para as execuções, que Deus falava aos homens em meios às tempestades e que mulheres enxugavam com seus cabelos os pés dos profetas.
              Quando nos afastamos de nossos deuses, traímos a nós mesmos!
              Hoje eu colhi alguns ramos pelo caminho em volta de minha casa e os trouxe comigo, bentos pela chuva.Fiz isso em memória do Filho Deus. Meu coração ficou feliz. Minha alma aquietou-se. Toda a natureza é o templo vivo de meu Pai. Com ele me deito, com ele me levanto e dou-lhe graças à cada manhã que nasce. Bendito seja o seu espírito em mim, hoje e sempre! (Ludmila)

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