Cristina, filha de Carolina


(foto da escultora/santeira Carolina Migotto, Taubaté, década de 70, acervo Fabiano Mauro Ribeiro)

Cristina, filha de Carolina
(*) Fabiano Mauro Ribeiro

Já lá vão mais de trinta anos. O engenheiro João Mauro do CTA, grande entusiasta da arte do Vale, já pertencia ao Conselho de Cultura de São José dos Campos. Nessa época eu o visitava sempre. Nos finais de semana, tinha reunião na casa de Mauro ou do brigadeiro Piva. Lá estavam freqüentemente, Justino (o Barra Seca) Jose Demetrio da Silva, Adão Silvério, Johan Gutlich, alguns outros engenheiros ou oficiais do CTA, e o padre Capelão. Esse grupo era, respectivamente, de admiradores, templários e componentes do circulo fechado da arte no eixo Taubaté – São José dos Campos.
Taubaté, a sociedade conservadora desde os tempos das entradas, rumo às Minas Gerais, suportava a gravitação desses nomes que compunham uma das maiores concentrações, uma parte de talento popular, na ação das figureiras e figureiros, santeiros e santeiras – e de uma outra, formando um núcleo que parecia atrair pintores e escultores de outras cidades mais distantes. Alguns tinham residência em Guaratinguetá, como Quissak Junior, ou subindo a Serra, beirando o Rio Paraitinga, São Luiz, até a pequenina Redenção da Serra, que um dia, como um conto bíblico, foi inundada pela águas da represa. Lá nasceu o agora consagrado como Mestre, Sebastião Justino.
Jose Demetrio da Silva, e Carolina Migotto, era um casal conhecido em Taubaté – a Carolina escultora (pensei conjugar santeira/escultora, mas, retiro, embora eu ache uma beleza alguém ser “santeiro” ou “santeira”) era a inspiração extravasada em monumentais santas, criadas em pedaços de madeiras, eu diria imanizadas, catadas nas demolições de construções, mais que centenárias, entre Taubaté e Guará.
Para as horas de por à prova sua extrema sensibilidade, eco dos talentos ancestrais Migotto, dos vales do Veneto, uma outra Carolina, se punha a pintar quadros ingênuos de uma beleza que atraia turistas de toda parte do Brasil, inclusive, a seguir, do exterior. É citada em vários dicionários e matérias avulsas, como sendo mestra do topo na pintura naif.
Da união do Zé Demétrio, que marcou com símbolos os portais de cidades como Guará, Nova Redenção, e caiu no gosto do dinâmico Azevedo Antunes, que o escolheu para construir o mural de entrada do seu faraônico edifício sede do Rio, nasceram duas filhas pintoras, Angel, e a que lembro nesse titulo, como Cristina, Filha de Carolina, que estará na exposição Arte Amor e Fé, dia 7 às 20h no Shopping Colinas em São José dos Campos.
Mãe e filha juntas é oportunidade para os que conhecem, rever, ou, os que querem conhecer, tomarem conhecimento de um dos ramos desse mundo todo especial, face inquietante do Vale. Formada em arquitetura, Cristina nunca deixou a arte plástica sair de perto. A artista, alem de seguir os mesmos canais talentosos da mãe em pintura, rendeu-se ao mesmo micróbio que parece vagar no ar do Vale – a escultura – e nela, particularmente, criando as fenomenais santas, que tanto em mãe como filha, são madonas com traços especiais e surpreendentes.
O estilo é impar, não existe copias nem copiadores – traços que dão à figura uns borrifos de expressionismo, mas ao mesmo tempo um primitivismo que cheira à terra, a índio, a sertão. A inspiração tem como morada final as tais madeiras anosas, muitas das quais, a Carolina certa vez me afirmou, terem cerca de trezentos anos, tiradas das cumeeiras demolidas, madeiramentos de telhados de velhos sobrados coloniais, algumas bem semelhantes em cor ao cedro, e que acabam por levar para as peças no final, depois de preparadas pelas artistas, uma cor impactante e misteriosa avermelhada. A soma é o conjunto de cor e brilho, que reflete assim a historia e o passado/presente do próprio Vale do Paraíba e sua gente, um grito para lembrar que a arte é reflexo, é parte e um seguimento necessário da vida.

(*) Fabiano Mauro é pesquisador de história e arte, e coordenou na década de 70 a Exposição itinerante Brasil Arte e Turismo, com sede no Rio, apoiando na ocasião os artistas do Vale, tendo vários trabalhos publicados sobre suas pesquisas.

Agradeço ao meu amigo Fabiano, por me permitir a publicação deste seu artigo, bem como da foto de Carolina neste meu espaço. Um abração, Fabiano! (Ludmila)

    

    Carolina Migotto, santeira


    (Nossa Senhora dos Anjos, escultura em madeira de Carolina Migoto, dácada de 70, coleção de Ludmila Saharovsky)


    (São Francisco de Assis,escultura em madeira de Carolina Migotto, dácada de 70, coleção de Ludmila Saharovsky)


    (Presépio, escultura em madeira de Carolina Migotto, dácada de 70, coleção de Ludmila Saharovsky)

    Na década de setenta, Carolina era casada com Zé Demétrio.
    Enquanto Zé construía seus monumentos, Carolina, literalmente, bordava a madeira. Seus santos, esculpidos em madeiras nobres, possuíam detalhes mínimos, de uma leveza difícil de conseguir e de entender. Como era possível extrair uma arte tão delicada de grosseiros toretes de madeira? Pois Carolina possuía este dom. Seus trabalhos estão espalhados em coleções particulares e em museus do mundo inteiro, e eu, não só tive o privilégio de desfrutar de sua amizade tão preciosa, como também de adquirir algumas obras suas, que encantam a todos que as vêem e a mim também! No início da década de noventa, Carolina precisou parar de esculpir, por problemas de saúde adquiridos pelo esforço que fazia para trabalhar a madeira. Ela migrou então para a pintura primitivista, e produziu inúmeros quadros retratando as festas populares do Vale do Paraíba, também de grande poder artístico. Saudades, Carolina…saudades e todo o meu amor!

      

      José Demétrio

      .
      ( “Aguia” escultura em argila e resina de 83 cm. do artista José Demétrio, de Taubaté. Década de 70.)

      Outro grande amigo, José Demétrio deixou pelo Vale, as marcas de seu talento em inúmeros monumentos.
      No meu aniversário em 1978 ele me presenteou com essa peça magnífica, que é uma de minhas prediletas.
      Confeccionada em argila e resina colorida, uma invenção dele, essa águia de 83 cm. está sempre comigo, feito um talismã.
      Em seu imaginário tão povoado por seres míticos, a águia era sua predileta: pela força, majestade, inteligência e leveza, ele dizia…no que concordo plenamente! Possuir uma águia por anjo da guarda é bom demais! (Ludmila)

         

        Sobre João Duarte Mauro


        (escultura em argila queimada do artista Sérgio, do Vale do Paraíba. Foto do acervo de Fabiano Mauro Ribeiro)

        A morte de João Duarte Mauro foi uma perda sensibilizante para o mundo das artes do Vale do Paraíba, onde era membro do Conselho de Cultura de São José dos Campos.
        O engenheiro químico João Mauro, lotado como profissional no CTA , à parte os excelentes serviços laborados perante aquele Orgão do Ministério da Aeronautica por mais de 25 anos,era,desde que aportou à cidade em 1965, um apaixonado do movimento artístico do Vale.
        Sua sensibilidade para com a nossa arte, talvez por ser filho de emigrante de primeira geração, carregada do talento que o aproxima bem do de seu irmão mais velho, Humberto Mauro, tido como pioneiro de nosso cinema em Minas, possuia aquela dose especial de percepção,que o fazia exergar um talento no artista tímido, ou um esplendor numa obra esquecida, que então passava a ser uma obra prima, desabrochando e se mostrando em sua plenitude. Era autodidata numa arte importantíssima: a de tocar a vida, guiando-se quase sempre fora dos esquemas pré-estabelecidos, daí a dificuldade na aceitação de tais temperamentos por pessoas que se subjugam aos trilhos dos caminhos convencionais.
        Somente um temperamento assim, com tal sensibilidade, seria capaz de descrever com riqueza empolgante os bonecos de argila de Sergio – escultor tido como “meio pancado”, e relegado por muitos a um plano inferior, vagando por Taubaté, mas que na realidade produzia obras em argila, de um vigor, e de uma plasticidade, que o aproximava até mesmo da teatralidade dos mestres do barroco. O pobre Sergio porém, no ambiente colonialista da gente do Vale, era deixado de lado, com sua esquizofrenia e seus bonecos estranhos, até que J. Mauro, com sua vigorosa dose de fantasia, o sacudiu, e quando o conheci, era já um Sergio, que mesmo expondo seus intermináveis escritos confusos num caderno de espiral, se mostrava capaz de dizer com opinião formada:” doutor, sensibilidade artística não existe!”. Assim pois era a marca, vamos dizer sem medo, genial de João Mauro – seu posicionamento no lado de cá das telas dos pintores, das telas dos cinemas e do anfiteatro todo especial que ele montava para ver a vida.
        Justino foi sua primeira descoberta, vindo da pequena Redenção da Serra, cidade próxima a receber o diluvio, dando lugar a uma repreza. Construiu-se porém, no alto do môrro, uma outra cidade, Nova Redenção! Ali Justino fazia afrescos da capela, Zé Demétrio, fez a escultura da entrada da cidade. Nesse cenário bíblico, em que uma cidade sucumbiu sob as aguas, ele iria tirar Justino, e fazer ver aos que no Vale queriam ignorar, que um talento inegável residia no confrade de Guima e Anderson Fabiano.Aqui, se buscarmos as escolas da moderna psicologia, talvez alguem vá encontrar o fenômeno da racionalização, e o desejo talvez da sua propria personalidade em se realizar, criando um Titã, num nanico – muitos apontavam defeitos na tecnica de Justino, mas se calavam. Não fôra a morte levá-lo, e ele poderia pessoalmente ter visto quadros do pintor de Redenção, numa exposição no Rio Othon, para o qual levamos através do Movimento Brasil Arte e Turismo.
        Gutlich (excelente pintor holandes radicado em São José), disse-me em relação à admiração de Mauro por Justino: “Ele achava que havia descoberto um Portinari no mato…” Exatamente aí , excluindo a ciumeira do mestre Gutlich, reside o ângulo fascinante dessa personalidade excepcional, que não media distância nem achava obstáculos quando estava diante de “sua verdade”, que ele projetava como verdade global. Para ele, “Justino era um mestre dos azuis e dos vermelhos”, e antes das primeiras exposições no Vale, o orientava nos detalhes mínimos em que achava melhor as nuanças e posições dos personagens nos momentos mais felizes das telas do pintor.Fico pensando por isso com muita seriedade naquela hipótese da realização de Mauro, como pintor, através dessa pressão salutar sobre os artistas. Desnecessário para ele, porém, seria qualquer aspereza de Academias – sua academia, parodiando Humberto, em frase famosa da antiga casa de Cataguases, “era a do Quarto da Sala”, onde uma vez instalado, logo se diplomava no assunto desejado. Entretanto, apesar de sua formação com pendores para a matemática, as incursões pelos caminhos do comércio, não foram felizes, pois acima de tudo pairava uma arte de viver genuína, desinteressada, e avessa à economia, e à disciplina. A prova disso, foi a tentativa de montagem de sua galeria em São José dos Campos – viu-se a morte quase no nascedouro, em detrimento de seu diletantismo, puro, dosado em fino humor, feito para uma platéia seleta. A programação lógica do comércio não coordenava com o gênio criativo de pitoresca especulação, quase pueril – predicado de alma de artista.
        Quiz viver assim, na arte, mas sem assumir compromissos, possuindo a sua escola, que por ser particular, era o seu mundo genuino, povoado ali pelas Carolinas, pelas Beneditas, pelos Zé Demétrios, e as figureiras do Morro de Taubaté, que lhe embalaram os sonhos ultimos.

        (in “O Jacareisense” – 08.01.978)
        Fabiano Mauro Ribeiro

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