Em nome do Pai

Wladimir Saharovsky, meu pai

Wladimir Saharovsky, meu pai

Convivendo com o pai, desenvolvi anticorpos que me afastam definitivamente de toda e qualquer bebida destilada. E como ele as consumia prazerosamente! Por causa de sua outra paixão, herdei uma biblioteca dos clássicos russos, escritos no idioma original: Tolstoi, Lermontov, Dostoievski, Pushkin, Gogol, Anna Ahmatova, Marina Tsvetaieva.
Com esses autores, busco exercitar a língua materna, receosa de esquecê-la. Tenho comigo que, se isso ocorrer, meu sentimento de orfandade será maior, tornando-me estrangeira dentro de mim mesma.
Essa literatura me insere numa dimensão de luz em que escuto vozes, frases, comentários que ouvi milhares de vezes durante boa parte da vida. Só quem domina um idioma por origem, e dele é afastado, saberá do que eu estou falando.
O pai costumava reler especialmente Guerra e Paz, Crime e Castigo, Anna Karerina e Irmãos Karamazov. Volta e meia eu o via mergulhado nessas obras sobre as quais sempre tinha algo a dizer. Os personagens integraram-se ao meu cotidiano, habitando-o com uma desenvoltura de quem fazia parte da família.
O que mais me tocava diante das releituras de Wladi (jamais chamei o pai de pai, e sim pelo diminutivo do seu nome próprio, Wladimir) era que ele se emocionava com as histórias como se nunca antes as tivesse lido. Sinto que isso acontecia porque ele se reencontrava com a sua alma russa. Essa essência coletiva não só empolgada e arrebatada, mas também imersa desde a mais remota idade em batalhas físicas e morais! Há nela entrega e temor a Deus. Súplicas de redenção e arrependimento pelas falhas cometidas em momentos de luxúria, cupidez, covardia.
A admiração de Wladi pelos autores patrícios era tamanha que extrapolava os limites dos romances. Ele devorava também suas biografias e os ensaios sobre a literatura de cada um, tentando conhecer a fundo os temas que lhes eram caros e as suas angústias existenciais, como forma até, quero crer, de se desculpar das suas próprias e inúmeras fraquezas.
Quando o levei para o hospital, sobre a mesinha de cabeceira do seu quarto, vi aberto o romance Ressurreição. Nele, Tolstoi procurou criar um novo homem, com maior lucidez, tentando conduzir os povos a uma harmonia utópica, a uma ética que infelizmente só se concretizou nas ficções.
Wladi partiu há muitos anos, quem sabe em busca de uma realização de todas essas quimeras tão peculiares à alma russa ou, quiçá, a todas as almas sensíveis de qualquer parte deste mundo, que hoje tanto me amedronta!
Que saudade, meu pai!

(Ludmila, do livro “Cem crônicas escolhidas e alguns contos clandestinos,” que será lançado em outubro.)

    

    Em nome do Pai

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    De meu pai russo, além dos anticorpos que me afastam definitivamente de toda e qualquer bebida destilada (que ele consumia prazerosamente) herdei uma biblioteca dos clássicos russos, escritos no idioma original: Tolstoi, Lermontov, Dostoievski, Pushkin, Gogol, Anna Ahmatova, Marina Tsvetaieva.
    Afastada da pequena colônia que ainda sobrevive em São Paulo, busco neles o exercitar da língua mãe, receosa de esquecer expressões e palavras. Tenho comigo que olvidando meu idioma natal, o sentimento de orfandade se abaterá muito mais forte, tornando-me estrangeira dentro de mim mesma, turista acidental perdida numa memória que, se não bem vigiada, irá esgarçar-se sem possibilidades de restauro. Os livros trazem-me de volta a uma dimensão de luz na qual as palavras materializam-se em vozes, em comentários tão familiares, em frases ouvidas dezenas de vezes, impregnadas de significados que preencheram minha infância: Nomes próprios, apelidos, evocações, provérbios, costumes. Só quem domina um idioma por origem, e dele é afastado, saberá do que estou falando. Mas, o pai relia incontáveis vezes Guerra e Paz, Anna Karenina, Irmãos Karamazov, e também as aventuras completas dos Três Mosqueteiros e O Homem da Máscara de Ferro de Alexandre Dumas, vertidas para o russo. Volta e meia eu o surpreendia mergulhado nessas obras que ele qualificava como sendo “de grande fôlego”, cujos personagens passaram a fazer parte integrante de seu cotidiano, habitando-o com a desenvoltura íntima de quem já faz parte da família. O interessante é que Wladi (jamais chamei o pai de pai, e sim pelo diminutivo de seu nome próprio, Wladimir) mergulhava nas histórias e emocionava-se com elas como se as lesse pela primeira vez. “Será que você avalia, perguntava-me ele, as características tão peculiares à alma russa, imersa desde a mais remota idade, em batalhas físicas e morais…uma alma coletiva empolgada e arrebatada, moldada por uma religiosidade de entrega e temor a Deus, de súplicas de redenção e arrependimento pelas falhas humanas cometidas em momentos de covardia? Veja Tolstoi, por exemplo, um homem de educação refinada, um conde, um visionário, um profeta cuja fama atravessou fronteiras, o idealizador da política da não violência, lido e citado inclusive por Gandhi. Um escritor de cuja mente saíram romances inesquecíveis! Você sabia que ele viveu por cinqüenta anos atormentado por uma relação tempestuosa com sua mulher, entremeada por ameaças de suicídio e desaparecimentos, em meio aos quais geraram dezesseis filhos e morreu ancião, na estação de Astropovo, não longe de sua casa em Iasnaia Pollina, fugindo de sua Sofia Andreievna? Quem consegue explicar tamanha loucura?” Eu ouvia as histórias do pai atentamente. Era melhor que qualquer filme, qualquer novela. Sua admiração pelos escritores russos extrapolava os limites das obras criadas. Ele devorava também suas biografias, tentando acompanhar a lógica do pensamento de cada um, sua doutrina política, as angústias existenciais, como uma forma até, eu quero crer, de desculpar as suas próprias e inúmeras fraquezas. Quando o levei para o hospital, abatido pelo cansaço de viver, ele absolutamente aceitou qualquer trégua. Naquela manhã, ao lado da mesinha de apoio do sofá da sala estava aberto o romance Ressurreição. Nele, Tolstoi procurou criar um novo homem, com maior lucidez, tentando conduzir os povos a uma harmonia utópica, a uma ética que, infelizmente, só se concretizou nas ficções. Wladi partiu há quinze anos, quem sabe em busca da realização de todas essas utopias tão peculiares à alma russa, ou, quiçá, à todas as almas sensíveis de qualquer parte desse mundo, que hoje tanto me amedronta! Que saudade, meu pai!
    (Ludmila Saharovsky)

      

      Em nome do Pai

      De meu pai russo, além dos anticorpos que me afastam definitivamente de toda e qualquer bebida destilada (que ele consumia prazerosamente) herdei uma biblioteca dos clássicos russos, escritos no idioma original: Tolstoi, Lermontov, Dostoievski, Pushkin, Gogol, Boris Pasternak. Afastada da pequena colônia que ainda sobrevive em São Paulo, busco neles o exercitar da língua mãe, receosa de esquecer expressões e palavras. Tenho comigo que olvidando meu idioma natal, o sentimento de orfandade baterá muito mais forte, tornando-me estrangeira dentro de mim mesma, turista acidental perdida numa memória que, se não bem vigiada, irá esgarçar-se sem possibilidades de restauro. Os livros trazem-me de volta a uma dimensão de luz na qual as palavras materializam-se em vozes, em comentários tão familiares, em frases ouvidas dezenas de vezes, impregnadas de significados que preencheram minha infância: Nomes próprios, apelidos, evocações, provérbios, costumes, religiosidade. Só quem domina um idioma por origem, e dele é afastado, saberá do que estou falando. Mas, o pai relia incontáveis vezes Guerra e Paz, Anna Karenina, Irmãos Karamazov, e também as aventuras completas dos Três Mosqueteiros e O Homem da Máscara de Ferro de Alexandre Dumas, vertidas para o russo. Volta e meia eu o surpreendia mergulhado nessas obras que ele qualificava como sendo “de grande fôlego”, cujos personagens passaram a fazer parte integrante de seu cotidiano, habitando-o com a desenvoltura íntima de quem já faz parte da família. O interessante é que Wladi (jamais chamei o pai de pai, e sim pelo diminutivo de seu nome próprio, Wladimir) mergulhava nas histórias e emocionava-se com elas como se as estivesse lendo pela primeira vez . “Será que você avalia, perguntava-me ele, as características tão peculiares à alma russa, imersa desde a mais remota antiguidade, em batalhas físicas e morais…uma alma coletiva empolgada e arrebatada, moldada por uma religiosidade de entrega e temor a Deus, de súplicas de redenção e arrependimento pelas falhas humanas cometidas em momentos de covardia? Veja Tolstoi, por exemplo: um homem de educação refinada, um conde, um visionário, um profeta cuja fama atravessou fronteiras, o idealizador da política da não violência, lido e citado inclusive por Gandhi! Um escritor de cuja mente saíram romances inesquecíveis! Você sabia que ele viveu por cinqüenta anos atormentado por uma relação tempestuosa com sua mulher, entremeada por ameaças de suicídio e desaparecimentos, em meio aos quais geraram dezesseis filhos e morreu ancião, na estação de Astropovo, não longe de sua casa em Iasnaia Pollina, fugindo de sua Sofia Andreievna? Quem consegue explicar tamanha loucura?” Eu ouvia as histórias do pai atentamente. Era melhor que qualquer filme, qualquer novela. Sua admiração pelos escritores russos extrapolava os limites das obras criadas. Ele devorava também suas biografias, tentando acompanhar a lógica do pensamento de cada um, sua doutrina política, as angústias existenciais, como uma forma até, eu quero crer, de desculpar as suas próprias e inúmeras fraquezas. Quando o levei para o hospital, abatido pelo cansaço de viver, ele absolutamente aceitou qualquer trégua. Naquela manhã, ao lado da mesinha de apoio do sofá da sala estava aberto o romance Ressurreição. Nele, Tolstoi procurou criar um novo homem, com maior lucidez, tentando conduzir os povos a uma harmonia utópica, a uma ética que, infelizmente, só se concretizou nas ficções. Vladi partiu há quase quinze anos, quem sabe em busca da realização de todas essas utopias tão peculiares à alma russa, ou, quiçá, à todas as almas sensíveis de qualquer parte desse mundo, que hoje tanto me amedronta! Tomara que tenha conseguido! (Ludmila Saharovsky)

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