Um brinde à felicidade!

amor

Sete horas da manhã.
O sol de outono, aqui no litoral do Rio de Janeiro, não tem nada de tímido.
Ele surge com força total, cravando 26 graus nos termômetros e obrigando a todos a buscarem uma sombra amiga.
À minha frente, caminhando com grandes mochilas às costas, um casal resolve fazer uma pausa para a água de coco. Esta seria uma cena absolutamente normal, não tivessem eles, penso cá com meus botões… quantos anos? Certamente perto de oitenta! Paro também, interessada em observá-los mais de perto. Ele, trajando largas bermudas de cor cáqui, meias até a altura da panturrilha, tênis, chapéu e um colete repleto de bolsos, tira a mochila das costas para ajudar sua companheira a livrar-se, também, do peso da sua.
Ela, uma senhorinha branca como a neve, de cabelinhos ralos e curtos, frisados por permanente, veste-se, igualmente, à vontade: usa um shorts largo feito saia e, amarrado à cintura, pende um casaco de moletom. Traz uma echarpe longa, (de voile?) sobre os cabelos e a camiseta cavada, com estampa do Corcovado, revela, indiscreta, as alças de um sutiã (ou será maiô?) que seu marido ajeita com cuidado. Ela, agradecida, toca com os dedos seu rosto e ele retribui ao carinho beijando-lhe a mão.
Tomamos os três, a água geladinha e prosseguimos a caminhada. À certa altura, eles sentam-se num dos inúmeros bancos espalhados pelo calçadão e ele a ajuda a tirar os sapatos. Eu, discretamente, observo seus pés delicados, de unhas pintadas de um rosa antigo, mergulharem na fina areia da praia.
Não consigo desgrudar-me do casal. Sigo atrás deles, que caminham de braços dados, conversando animadamente; rindo, abaixando-se para coletar alguma rara concha, que atiram de volta para o mar. Formam um belo par de apaixonados, que só revela a idade pela carne, já flácida, a curvatura das costas e os movimentos lentos, mas, a felicidade estampada nos gestos e no olhar atenua esses meros detalhes! Olhando para o mar, de comum acordo, eles param. Colocam as bolsas com cuidado sobre a echarpe estendida sobre a areia e sentam-se apoiando-se nelas. O céu azul, a água límpida e o calor já impertinente convidam para um mergulho. O homem se despe. Está com um calção florido, engraçado, que lhe chega até os joelhos, por baixo da bermuda. Tira o colete, depois a camiseta. Sua pele rosada, recoberta por uma pelugem cor de prata, brilha sob o sol, assim como a calva pronunciada. Ele dobra suas roupas com cuidado e as coloca de volta na mochila. Abre então a dela, retira uma toalha, que faz de biombo, para que a senhorinha possa trocar-se com um mínimo de privacidade e surgir num maiô escuro, inesperadamente magra, igual a uma menina. Nesse momento, buscando alguém na praia para confiar seus pertences, eles me percebem. “A senhora poderia tomar conta das coisas, um instante, para nós?” Eu concordo.
Eles brincam entre as ondas feito dois adolescentes. Passado algum tempo, retornam e, remexendo em seus guardados, tiram uma máquina fotográfica, daquelas antigas, de filme que se precisa revelar. “Abusando de sua gentileza, será que a senhora poderia bater uma foto nossa?” ele diz. Ela se aproxima e completa: “Hoje comemoramos sessenta anos de casados… Passamos nossa lua-de-mel nesta praia”.
Não consigo mirar no visor. Meus olhos, marejados de lágrimas, embaçam tudo. Peço desculpas pela minha emoção. Eles me abraçam e depois, se abraçam. Eu tiro a foto e lhes dou os parabéns. “E estão sozinhos aqui, hoje?” pergunto. “Fugimos da família” ela responde, os olhos brilhando marotamente. “Resolvemos pegar o ônibus e refazer a viagem como da primeira vez!” “A senhora nos acompanha no brinde?” Tiram uma garrafa de champanhe da bolsa, copos de plástico e brindamos à sua vida, certamente repleta de aventuras e desventuras, mas recoberta por um afeto tão intenso que, nessa manhã de junho, acelerou meu coração e o faz bater com mais fé, emoção e fantasia! Se eles permanecem com essa energia, alegria e disposição para a vida, nós também haveremos de conseguir!
Felicidades, Agostinho e Guiomar! Esta crônica, embora nunca a leiam, é para vocês!
(Ludmila Saharovsky)
crônica publicada no Jornal Valeparaibano em 2008

     

    José Menino

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    José Menino – Uma pria perdida na infância

    Filha de imigrantes, com parcos recursos para grandes viagens de lazer, férias para mim eram o acontecimento do ano. Passar uma semana na praia, Deus do Céu, como era bom!
    Meus pais acreditavam que banho de mar possuía poderes terapêuticos e o sol ajudava a fixar o cálcio nos ossos, potencializando o efeito do óleo de fígado de bacalhau que eu engolia sob protestos, diariamente, tapando o nariz! Assim, mal despontava janeiro, passagens compradas antecipadamente, lá íamos nós até a Praça da Sé, embarcar em outro ônibus que nos levava até Santos.
    Creio que nunca fui tão feliz como naquelas temporadas!
    Percorrer a Serra do Mar, a estrada cheia de curvas, maravilhando-me com a paisagem, o nariz grudado à janela, vendo os anúncios passarem por mim, flutuando nas montanhas, era uma emoção inenarrável.
    Tudo era mágico: a neblina, os precipícios, as altas pontes, os túneis, os automóveis que paravam na subida da serra com o motor “fervendo”, os ouvidos tamponados pela pressão. E depois o cheiro: Aquele odor ardido da Usina de Cubatão, cuspindo longas labaredas de fogo pela alta chaminé, anunciando que, finalmente, o mar estava próximo.
    Nós sempre nos hospedávamos numa modesta pousada, de frente à Praia do José Menino. Tudo, a partir de então entrava num ritmo diferente: a rotina, o cenário, a comida, as pessoas, mas, sobretudo, os sentimentos. A felicidade podia ser tocada e o era. Ela deixava em mim marcas físicas: arrepios, o riso que não desgrudava da boca e uma certa angústia em ver que não podia interferir na passagem do tempo e fazer de conta que os dias de verão nunca terminariam!
    O pai e a mãe, descontraídos, vestiam-me com roupas novas e íamos passear na orla. Tirávamos os sapatos e deixávamos que as ondas se quebrassem sob nossos pés descalços, saboreando picolés de coco e chocolate, meus predileto! E havia a lua, imensa, refletida na água! Pela manhã, bem cedo, o perfume do óleo de bronzear já enchia o corredor, saindo de todos os quartos. Nas mesinhas do refeitório, bananas, suco de laranja, café ralinho, pão e as bolinhas geladas de manteiga eram um verdadeiro manjar dos deuses! Depois, o chapéu de palha, os tamancos de solado de madeira, óculos “gatinho” e a obrigatória saída de banho confeccionada em algodão branco e felpudo eram acessórios que não podiam faltar. Ah! e havia também a boia preta, aquela velha câmara de pneu, gorda de ar, que o dono da pensão nos emprestava para brincar nas ondas.
    Os guarda-sóis começavam a surgir, mas eram poucos, assim como as esteiras feitas de palha; mas havia as sombras de árvores disputadas por brancas mães e avós, apertadas em seus maiôs de lastex e cercadas por crianças barulhentas e felizes como eu! Poucas horas depois, e o sol já ardia na pele, assim, com as bochechas afogueadas, nariz lambuzado de pasta d’água, cabelos endurecidos pelo sal das ondas e o fundilho do maiô cheio de areia compactada, eu voltava à pensão, rezando para que não houvesse fila aguardando a vez de entrar debaixo da ducha comunitária, instalada no corredor. Minha pele ardia demais sob a mistura de óleo, sal e areia!
    Após o almoço de salada, arroz com feijão, macarrão e frango geralmente ensopado, a sesta era obrigatória. O dia, dividido em dois, durava o dobro, pois à tarde a maratona se repetia. O regresso pra casa era triste demais, mas, a certeza de que outro janeiro em breve chegaria, espantava as lágrimas e a contagem decrescente dos dias começava ali mesmo. Hoje, essas recordações passam por minha cabeça, feito filme, e eu me espanto:Era eu mesma a protagonista?
    Digam-me, por favor, a quem posso pedir de volta minha infância?

    (Ludmila Saharovsky)
    cronica publicada no jornal O Valeparaibano

      

      Porque escrevo

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      Perguntam-me porque escrevo
      Creio que nasci sob o signo da escrita. O ato de escrever é tão inerente a mim, que não consigo separar-me dele. Escrevendo eu consigo entender o mundo, entender a mim mesma e à realidade que me cerca. Escrevendo me aproximo, sem timidez nem receio das pessoas.
      Quando criança, ao apagar a luz do quarto, eu mergulhava num universo perfeito, imaginado ali mesmo, entre os lençóis da cama. E me viciei. O mundo de dentro era bem melhor que o de fora… Não necessitava de palavras, apenas pensamentos. Ah… aquela felicidade rara do silêncio dos peixes, das formigas, das borboletas. Elas viviam sem emitir qualquer som, e, no entanto se entendiam. E porque este medo da palavra verbalizada?
      Ele existia porque minha língua era estranha. Meus amigos de carne e osso não a compreendiam. As palavras saíam titubeantes, entrecortadas, estrangeiras de minha boca.. .Isto quando já não morriam prematuramente na garganta. Ah… como eu quis então me comunicar emitindo apenas sons, feito os animais. Os sons agônicos me fascinavam. Mas, infelizmente eu nasci pertencendo ao reino dos humanos. E tive que superar minhas dificuldades. Abrir a boca e falar. Mas, antes disto, sentei à mesa e escrevi. Escrevi cartas para amigos imaginários. Escrevi confidências em diário trancado com uma chavinha de borda rendada. Escrevi contos que traduzia. Depois, histórias que eu mesma imaginei. Escrevi poemas. Escrevi estudos. Escrevi discursos. Escrevi crônicas. E não parei mais. Fiz da escrita meu norte. Meu porto seguro. Minha estratégia para fugir da solidão. Minha senha para entrar na casa de pessoas que de outra forma não contataria. Meu ritual para fazer novas conquistas. Para seduzir. Sim, seduzir. A escrita sempre foi minha arma secreta. As letras sempre me arrastaram para a vida. Sua força latejava em minhas veias. Seu exercício enfeitava-me mais do que qualquer roupa, qualquer jóia, qualquer adereço raro. Diferenciava-me na multidão. Minhas palavras escritas, pressentidas, eram como que flores perfumando o caminho em meio à neblina. E estrelas iluminando um céu nem sempre varrido de nuvens. Elas eram minha secreta e íntima melodia. Minha ligação com o divino em mim. Minha ligação com o divino de cada um que se aproximava de mim. Meus pensamentos transformados em escrita eram partículas de luz dançando dentro de meu corpo. De meu cérebro, de minhas entranhas. Eram unicórnios observando a lua refletida nas lagoas.
      Eram princesas de longas cabeleiras douradas preparando-se para o florescer da paixão. Eram a eternidade colorida por mil arco-íris.
      Eram montanhas esvoaçantes e árvores deslizantes. Eram o meu mistério. São o meu mistério. Meu jardim secreto. Meu sagrado, que tenho o privilégio de comungar com quem me lê.
      Ludmila Saharovsky

        

        Exercício para materializar lembranças

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        “A lembrança pura não tem data. Tem uma estação” ensinou-nos Bachelard, e ele estava certo!
        “Aquilo que a memória amou fica eterno” disse Adélia Prado. Mas, como alcançar esse território da eternidade e trazê-lo para o presente?
        Penso que recordar é uma outra forma de habitar o tempo, e o veículo que nos leva a ele é a saudade. Saudade de pessoas que foram importantes em nossa vida. Saudade de lugares, de cheiros, gostos, do timbre de uma voz. Saudade de uma determinada música que se alojou em nossa alma e não se desprende. Saudade de emoções, da infância, da juventude que passou voando! Um instante, um inspirar e expirar, apenas, e já se fez passado.
        “Minha alma é um bolso onde guardo minhas memórias vivas”, escreveu Rubem Alves. Pois a minha, lhes digo: é um trem carregado de reminiscências. Um trem daqueles em que os vagões se perdem na contagem, de tantos que são e, ao mesmo tempo, ele não passa de um vislumbre! Ele não passa de uma estrela cadente cortando os céus, como na música de Raul Seixas: “Ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem/Ói, ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho éon/ Ói, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem.” Olho o trem e não consigo toma-lo rumo ao passado! Não consigo aprisionar, materializar, sequer organizar minhas memórias, quanto mais torna-las vivas! Elas vão e vem ao seu bel prazer, e quando penso que, enfim, eu consegui aprisionar alguma, aí é que ela me escapa!
        Com o decorrer do tempo fui aprendendo que, para habitar o território das lembranças é preciso tornar-se mestre no ofício da imaterialidade. Se pensamento é energia pura, as lembranças ficam ali, no vácuo. Elas não são os pontos luminosos. Não! Elas são a sua sombra, por isso é tão complicado retê-las. Por isso lembranças não tem datas, apenas estações. Apenas emoções. E eu pratico. Fecho meus olhos e me deixo flutuar nessas estações, como quem não quer nada… Então, minha alma lança o anzol no mar da memória, e, na maioria das vezes, traz a pesada ausência enroscada nas algas do tempo, em seixos, em calhaus, em musgo. Até livrar-me disso tudo, a ausência já escapou, não teve tempo de virar presença, mas, algo ficou no ar, feito um sopro ecoando no silêncio, que me estremece, me arrepia, roça meu íntimo, suavemente, e se esvai. É assim, feito o farfalhar da seda que não toco, mas adivinho, leve! Ah! A insustentável leveza das recordações! Creio que é por isso que escrevo tanto! As palavras tem o poder, tem a magia de materializar lembranças no papel. Palavras são feito pedras que atiramos no lago e que vão formando aqueles círculos visíveis, que vão se abrindo mais e mais e se permitem ser tocados, quando a pedra que os provocou, já nem tem mais importância alguma.
        Todo esse texto, essas reflexões, são para trazer, você, minha mãe, à essa estação que sua ausência criou em mim, e que as lembranças jamais preenchem, e que as saudades jamais saciam, e a eternidade não consegue aproximar…
        Ludmila

          

          Jacareí: Tempo e memória

          Foto da avó Nicota (Ana Rita Leite Gehrke) gentilmente cedida por Jussara Gehrke

          Foto da avó Nicota (Ana Rita Leite Gehrke) gentilmente cedida por Jussara Gehrke

          Amigos me estranham. Sumiu porquê?
          Sumi não…é que estou em gestação, respondo! Gestando um novo livro que me tem envolvido em seu enredo.
          Aliás, estou numa viagem no tempo. No tempo passado. Revisito lugares, me encanto com fachadas de casarões que redescubro e de pessoas que os habitaram. E vou encontrando jardins e sacadas, sentindo cheiros bons de licores caseiros, servidos em varandas ensolaradas ao cair da tarde.
          Hoje, estive com dona Nicota, no Botequim do Café, que ela abriu lá no Mercado Municipal, provando seu delicioso bolinho caipira. Gente, que delícia! Recomendo muito o endereço! A receita? Bom…isso é uma outra história! Depois fui à beira de nosso Rio Paraíba conversar com as lavadeiras. “Quanto é pra lavar um cesto de roupas, comadre?” “ A senhora dá o sabão?” “Não! Pode incluir o sabão” “Então é dez tostões a baciada… “ Passo, na volta, na Rua da Biquinha e encho meu cântaro de água cristalina, que ofereço a vocês. Estão servidos?
          Ontem comprei massa, na Fábrica de Macarrão dos Lencioni, na esquina dos Quatro Cantos, verdadeiro pedacinho da Itália no coração de Jacareí. Lá estão instalados também os Zonzini, com sua venda de secos e molhados ( o vinho tinto importado, que fica nas cartolas, lá no depósito é fantástico…recomendo!) os Mercadante, os Tarantino, os Perreti, o Scavone, atendendo garbosos cavalheiros em sua barbearia (olhei de soslaio e creio que o Dr. Pompílio estava lá, fazendo a barba!), e mais adiante a família Marino, com seu açougue. “Tutti Buona gente!”
          Daqui a pouco, vou me arrumar para ir à Estação, ver o trem passar…Quem sabe vejo aquele rapaz simpático que sempre vai à Capital, e, me acena da janelinha…E, à noite, não posso perder a apresentação da Orquestra Sinfônica dirigida pela maestrina, dona Dionisia Zicarelli. Estão vendo como tenho ocupado meu tempo?
          Então, se quiserem encontrar-se comigo, é só ir até a Rua Direita, que, com certeza irão me achar…ou ir até o Beco do Caranguejo! De lá, no Morro do Marreli é um pulinho!
          Até mais, amigos!
          (Ludmila)

          PS. Esses e outros personagens estarão contando suas histórias sobre Jacareí, e dando mil e uma receitas deliciosas nesse livro que escrevo…mas, só para abrir seu apetite, aí vai a receita do licor de leite, do “Diário de 1946” de Dona Cida Cortez.

          1 litro de leite, 1 garrafa de álcool de cereais, 1 kilo de assucar, 2 favas de baunilha, 2 pares de chocolate, rodelas de limão.
          Depois de fervido o leite junta-se o álcool, assucar, o chocolate ralado e a baunilha em pedaços; por último as rodelas de limão. Deixa-se em infusão 9 dias, mexendo-se todos os dias. Passa-se em escossia e filtra-se.
          Gostaram? Pois no livro terá bem mais…Aguardem!

            

            E quando a palavra não existia?

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            E quando a palavra não existia?
            Quando pedra era pedra, simplesmente, reconhecida em sua essência pelo toque? E noite era noite, e chuva era chuva, e ave era ave, e as emoções que provocavam permaneciam agarradas aos nossos ossos e medulas e passavam a fazer parte de nosso inconsciente? Nesse tempo as palavras dormiam no silêncio da mente e não faziam falta. Tudo podia ser reconhecido pela cor, som, odor, energia, movimento. A cor falava aos sentidos: o homem pintava-se de vermelho e buscava ação. Dela nasciam o ardor e os impulsos, e as conquistas iam se realizando.
            O amarelo remetia à alegria, à exuberância, ao sabor doce das frutas maduras: o calor do sol incitando à vida.
            E vinha o aconchego do verde, a relva, a cama de folhas macias, o olhar vagando pelos campos infindáveis sem sustos nem atropelos.
            E no azul do céu e do mar, estava o desprendimento, o infinito, o sonho, o desejo das profundezas e das alturas.
            O marrom era a cor do campo lavrado, do cansaço ao final do dia, da magia das sementes germinadas no útero da grande mãe, a terra.
            E o negro manto do mistério recobria tudo: a noite, a caverna, o medo, os demônios, os assombros, até surgir o branco da lua, da clareza, da luz difusa, dos momentos de paz quando tudo se aquietava e o homem observava o céu buscando nortear-se pela disposição dos astros!
            Não sei se foi realmente o Verbo que criou tudo o que existe. Penso que ele nomeou as coisas que havia e então começou nosso delírio! Colocamos nas palavras um peso e uma importância que elas não podem suportar…
            Quem sou eu? Ninguém mais se identifica como a energia que permeia a forma. Ninguém se reconhece como a semente que se fez corpo composto por terra, fogo, água e ar. Por luz, cor e fantasia!
            Palavras não rompem cercas nem libertam. Elas não gemem nem choram. Não nos envolvem nos tons do arco-íris. Não nos perfumam. Não nos refletem. Não nos redimem.
            Palavras não desvendam os segredos dos oráculos. Estes se revelam nos ossos, nas vísceras, nas pedras, no fogo, na areia, nas sementes… Quiçá nas estrelas!
            Mais vale um aceno! Mais vale um beijo, um abraço, um soco, um uivo, um sorriso, um cheiro.
            “Ao criar uma palavra para cada coisa substituímos as coisas pelas palavras” já descobriu Foucault. E então mergulhamos na ilusão, mergulhamos em maya.
            A vida é dominada pela ação em si, e não pela palavra!
            Mas, basta reconhecermos em nós que a palavra é uma falácia, que o verbo nomeia mas não revela a essência, e que é no silêncio que ouvimos a voz de nossa alma, e então as cores, os sons, a luz e o movimento nos levarão para aquele outro lado, onde o verbo não se faz carne, mas assim mesmo nos habita!
            (Ludmila Saharovsky)

              

              O sumiço das galinhas

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              Como todos, na vizinhança, no bairro em que morávamos em Carapicuíba, nós também tínhamos um galinheiro. Quantas vezes eu despertei ao som dos galos saudando o nascer do sol, cada qual com seu cocoricó particular – sempre estridente – como tão bem descreveu João Cabral de Melo Neto em seu poema Tecendo a Manhã:
              “Um galo sozinho não tece a manhã/ ele precisará sempre de outros galos/ de um que apanhe esse grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo/ que apanhe o grito que um galo antes/ e o lance a outro…”
              Pois era exatamente assim que amanhecia nos dias de minha infância. Logo, adultos e crianças pulavam da cama para enfrentar as lides, que não eram poucas! Nosso galinheiro era um cercado de tela no fundo do quintal, onde o avô improvisara um tosco telhado de sapé que protegia o poleiro. Nas feiras-livres havia um grande comércio de galinhas poedeiras: ruivas, brancas, carijós. Seus ovos, depois de galados, eram reservados. Assim que alguma começasse a apresentar sinais de que iria ficar choca: as penas arrepiadas, a cantilena diferente, a busca de um canto para se aninhar, já a avó corria para providenciar os ovos e eu ficava torcendo para que os pintinhos nascessem logo. A transformação de um ovo num ser vivo foi o primeiro milagre que presenciei. Com o passar dos dias, eles iam ficando mais pesados e, ao serem observados contra a luz, percebia-se, nitidamente, que dentro se formavam os contornos de outra ave: o bico, os pés, as tênues veias transportando o sangue. As vizinhas dependuravam-se nas cercas que delimitavam os quintais, em busca de uma prosa que acontecia mais por gestos do que verbalizada. Ainda não dominávamos tão bem o novo idioma, assim, na base de muita mímica, eram informadas de quantos ovos haviam vingado. Ofereciam então talos de couve, folhas amassadas de alface e outras verduras que, bem picadinhas, reforçavam a dieta daquela numerosa prole alimentada também com quirera e minhocas. Em algumas semanas as aves começavam a adquirir características próprias, revelando o sexo. Os varões eram sempre os mais briguentos, sendo os primeiros a cumprirem seu destino de ensopado!
              O curioso era como cada família Identificava suas aves. Uma fita colorida atada ao pé, logo remetia as extraviadas ao seu dono, num código que permitia a todos um convívio absolutamente pacifico.
              Certo dia chegou à vila um circo mambembe composto por alguns pares de artistas, meia dúzia de caminhões, um casal de pôneis amestrados, alguns cães vestidos com saiotes e boleros, um elefante muito triste e um leão meio cansado…Não é preciso dizer que a garotada entrou em êxtase! Naquele fim de mundo, um circo era uma transformação radical da rotina. E foi! Tanto que, após anos e anos de distância que me separam dos fatos, rememoro como se fosse ontem, a indignação de D. Rosa, inconformada com o sumiço de sua carijó. Foram aqueles desocupados, afirmou ela convicta, indo tomar satisfações com o homem magrelo que, equilibrando-se sobre longas pernas de pau, gritava pelo megafone as atrações de cada espetáculo. O dialogo esquentou de tal maneira que foi preciso chamar Seu Raimundo, o guarda civil, para apaziguar os ânimos. Mas… a galinha de D. Rosa não foi a única a desaparecer misteriosamente. Outras a seguiram provocando um reboliço na rua, maior do que em dias de feira ou de quermesse! Eu sei é que, por conta do desaparecimento das aves, foi-nos terminantemente proibido rondar as adjacências. E se começassem a desaparecer também as crianças? Assim, sem ter caído nas graças do respeitável público, logo o circo foi desmontado e partiu.
              Quanto ao mistério do sumiço das galinhas…este jamais foi elucidado!
              (Ludmila Saharovsky)

                

                Contam os antigos…

                Contam os antigos...

                Ninguém soube como tudo começou. De repente não se falava de outra coisa: a cidade fora visitada por extraterrestres. E não era a primeira vez! De repente, sem que ninguém soubesse como ou por que, as comadres reuniam-se e passavam o dia comentando sobre os tais dos “marcianos”.
                O tempo passava, todo mundo esquecia, mas desta vez aconteceu logo com o seu Jurandir, o boticário mais respeitado do pedaço.
                Contou ele que vira as luzes piscando e se aproximando na neblina da madrugada que o pegara insone, observando a Mantiqueira do terraço da sala. Naquela época, todos acreditavam em tudo, principalmente, quando nada acontecia.
                Eis que a notícia do disco voador começou de mansinho, como as grandes epidemias que se espalham, aparentemente vindas do nada: seu Jura fora raptado por uma nave, bem na porta de sua casa, localizada na principal praça da cidade, ao lado da igreja e de frente à Câmara Municipal. Começou tudo com as luzinhas no céu, que ele saiu para ver mais de perto, de pijama e chinelos. Esquecera até do boné contra o sereno. A cidade dormia seu justo sono: Nenhuns cachorros sem dono ou bêbado vadio serviram de testemunhas. Nenhuma dama da noite perambulava pela quadra, quando o brilho materializou-se num funil, ofuscando-o, hipnotizando-o, até que se sentiu suspenso no ar e depois… depois não se recordava de mais nada!
                Os mais velhos garantiram que seu Jura estava variando. Oitenta anos! Não seria para menos! Depois que dona Mocinha morreu, ele nunca mais foi o mesmo. Não dizia coisa com coisa, tomara-se recluso e ante social, e agora vinha com essa patacoada sem pé nem cabeça. Disco voador na cidade, e logo na Praça da Matriz! Onde é que já se viu?
                O fato é que a história mexeu com a população mais do que se poderia esperar, principalmente com a moçada! À noite, ninguém conseguia dormir. Grupos organizavam-se para vigílias permanentes. O céu noturno era perscrutado com binóculos, lunetas, óculos de grau. Qualquer vidro de aumento, à mão, servia para o intento.
                Quando a notícia parecia esfriar, logo surgia outra, e a mais recente dava conta de que seu Jurandir tinha em seu poder, uma prova. Uma prova incontestável de existência dos ETs.
                Os chefes de reportagem dos principais jornais ordenaram aos seus noticiaristas que municiassem o povo com revelações assombrosas. Tabloides vendiam feito água!
                Seu Jura aparecia estampado, diariamente, nas primeiras páginas até dos periódicos da Capital. Tornou-se presença obrigatória nas rodas de prosa das esquinas, na mesa do bar do seu Constâncio, nos programas de auditório das rádios da região, e estaria até na TV, se essa já existisse. Mas, o tempo passava e a tal da prova nunca que era apresentada, até que, por natural cansaço, todos começaram a acreditar que ela já fora mostrada, e que provocara um choque geral.
                Os mais enfáticos chegaram a afirmar que seu Jura tomara-se portador de poderes paranormais, a partir do objeto secreto que os marcianos lhe confiaram. Filas de crédulos começaram a formar-se em frente à sua casa em busca de soluções para os mais variados problemas. Ele resolvia desde olho gordo, passando por amores impossíveis, perdas de emprego e até aleijões.
                Hoje, seu Jurandir da Farmácia empresta o nome à principal avenida da cidade. Lembram os antigos que fora um personagem ilustre, um ser humano ímpar. Um benfeitor. Quanto aos extraterrestres… mas quem foi que disse que eles existiram?
                (Ludmila Saharovsky)

                  

                  Páscoa de antes

                  naife de Carolina premiado na Bienal(pintura naife de Carolina Migoto, premiada em bienal)

                  Um ritual de preparativos antecedia sempre a Páscoa, festa mais importante do que a de Natal, na casa de minha infância, entre os avós.
                  “Morrer, Deus me ajude que seja depois da Páscoa”, comentavam eles, ano após ano. A mesma eterna ladainha…e as Santas Semanas sucediam-se sem mortes na família. Um dia porém, a avó se foi, e o avô também, antes da Páscoa, contrariando seus desejos e todo o planejamento, deixando-me como herança as antigas tradições e uma saudade incontida.
                  Na quaresma não entrava carne em casa, nem leite, ovos ou manteiga. Era estranho passar-se um tempo ingerindo dieta vegetariana, mas os avós eram severos e intransigentes quando se tratava de leis divinas. Ou seguia-se ao pé da letra o hábito dos primeiros cristãos, ou o castigo viria: líquido e certo! O fato é que, assim, sobrevivemos, fortalecendo corpo e alma. A semana que precedia a esperada comemoração era-me especial em todos os aspectos. Primeiro, as missas noturnas e diárias, nas quais, emocionada, eu acompanhava em capítulos, a história dos últimos dias de Jesus, narrada com voz solene pelo avô, na leitura dos evangelhos: Domingo de Ramos, a ceia entre os apóstolos, a oração no Jardim das Oliveiras, a traição de Judas, o julgamento de Pôncio Pilatos, as negações de Pedro, os passos da Paixão, o desespêro de Verônica, a crucificação e a morte de Jesus e, passados três dias, o milagre de sua Ressureição. Em minha cabeça infantil as imagens formavam-se dramáticas, o coração apertava de angústia e eu me ajoelhava no templo, mal aguentando a dor de tamanha injustiça, as lágrimas pingando sobre o assoalho da velha igreja. “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem!”
                  Durante o dia, em casa, o alvoroço dos preparativos: as conservas de pepino azedo, tomates e cogumelos; a defumação do arenque, o doce de ricota com passas e favas de baunilha, o pernil, os panetones altos, encimados por casquetes rendados de glacê e confeitos. O ritual do tingimento de ovos era o mais aguardado por mim. Depois de cozido, o ovo era mergulhado em anilinas importadas (verdes, azuis, vermelhas, cor de violeta) e decorado com arabescos, flores, coelhos, igrejas de cúpulas douradas e o que mais a imaginação permitisse. Os mais bonitos eram separados para presentear os amigos. Os outros seriam consumidos pela família durante a ceia. Odores de diversas especiarias ensalivavam-me a boca antecipando o cardápio da mesa farta após a longa abstinência da quaresma. Quantas noites eu adormeci aspirando o cheiro bom de açafrão, extrato de laranja e de favas de baunilha, iguarias importadas que a avó adquiria com economias feitas durante meses. Eram cheiros da sua infância que ela trazia para a minha. O cochilo à tarde era ítem obrigatório para que eu enfrentasse, valentemente, o longo amanhecer do Domingo de Páscoa. Envolvia-me, então, um sono leve e inquieto, interrompido a cada minuto pelo ruído das últimas providências e pelo alvoroço que me invadia a alma: a expectativa da procissão do Senhor morto, iluminada por velas e archotes pelas ruas ao redor do templo, os cânticos fúnebres entoados pelo coral regido por meu pai, o reencontro com velhos amigos da família que me presenteavam com pequenos coelhos feitos de marzipan (da Sonksen) que eu mal via a hora de devorar!
                  Parece que foi ontem: as lembranças da igreja repleta de flores e fiéis, a veste roxa do avô, que após a meia noite era trocada por uma branca e dourada, as luzes da igreja acendendo-se e iluminando rostos de homens, mulheres e crianças que, abraçando-se festejavam, novamente, o milagre da Ressureição. “Xristos Voskresse!” “Cristo Ressuscitou!” todos repetiam.
                  Quantas vezes eu me quedei silente no interior do templo, observando a imagem daquele Jesus desamparado, inerte, tombado sobre si mesmo, que tantos pranteavam e, mesmo sabendo o final daquele drama, eu sofria. Jamais compreendi o motivo das religiões escolherem essa sua representação como símbolo do cristianismo, em vez Dele renascido em toda a sua glória. O calvário da dor nos impressiona mais do que o milagre do renascimento? Cresci e prossigo pensando igual. Hoje já não sofro tanto por esse Menino que me apresentaram: que nasceu perseguido, cresceu escondido, sofreu tantas ofensas e morreu na cruz. Cedo intuí que Jesus foi um brilhante inovador de idéias, pelas quais não relutou em dar a própria vida. O filho de Deus que nos disse: “Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei.”
                  Pena que, tantos séculos passados, sua Via Crucis não nos tenha inspirado!
                  (Ludmila Saharovsky – crônica publicada no Diário de Jacareí em março de 1997)

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