A difícil convivência dos opostos

Noell S. Oszvald

Estamos vivendo tempos muito complicados.
Paira no ar um certo desconforto, uma intolerância, um baixo astral que vem opondo irmãos, amigos, conhecidos que já não se reconhecem e começam, infelizmente. a se desprezar.
Há os que adotaram a cor verde/amarela como bandeira e há os que foram hipnotizados pela vibração do tom vermelho, e o complicador é que estamos todos lado a lado, navegando num mesmo barco que se encontra à deriva.
O enorme Titanic no qual viajamos está prestes a ir à pique. O iceberg da corrupção cresceu tanto (e hoje vislumbramos apenas a sua ponta) que, fatalmente, afundará o navio, e então estaremos, todos, no Mar das Tormentas.
Haverá embarcações e boias para que todos nos salvemos? Não sei, mas logo, logo saberemos. Inevitável se torna, a essa altura, evitar a tragédia anunciada.
Os passageiros da primeira classe celebram a vida no convés, enquanto o comandante nos leva para águas cada vez mais turbulentas. E nós, viajantes do andar de baixo, somos obrigados a alimentar as chamas da caldeira, com o suor de nosso corpo e o esforço sobre humano de nossos braços já cansados de remar contra a maré. Sentimos então, uma tristeza, um desânimo, uma angústia sem tamanho. Onde estará o tão sonhado porto de chegada para que, em fim, desembarquemos?
Que itinerário é este que não escolhemos, perguntamos exaustos e começamos a nos revoltar contra tudo e contra todos: contra o navio, o capitão, a classe executiva, o mar revolto… e nossa tristeza é substituída pelo ódio. Pela raiva. Pelo medo. Passamos então a dar espaço a todos os demônios que habitam o nosso lado negro. Vociferamos contra o comandante, amaldiçoamos seus imediatos, maldizemos os passageiros privilegiados e anelamos, do fundo de nossa alma, que este navio vá à pique! Mas, detalhe: também estamos nele! Caso o navio afunde, todos pereceremos nessa viagem.
A única forma de sobreviver que nos resta, é olharmos para o distante horizonte e acreditarmos que a tormenta há de passar em breve. Então, nos agarramos ao leme da esperança, e oramos para que a justiça, a ética e a moral prevaleçam neste mar revolto e nos conduzam novamente à terra firme. (Ludmila)

(Crônica para a Revista Absollut com fotografia de Noell S. Oszvald)

    

    Quando o céu transborda

    nuvens

    Chove e não entendo se é o vento que arrasta a chuva até os vales, ou se é o destino das nuvens, que, abruptamente, interrompe seu ciclo de alva leveza e as coloca no mapa das tormentas.
    Chove, e meu coração acompanha a teia de gotas que se fecha sobre a pedra que submerge, sobre a rua que submerge, sobre as plantações.
    Por dentro da chuva que cai, impiedosa, a dor das perdas, tantas, despeja-se nos rios que transbordam, nas enchentes que engolem os verdes pastos, nos sonhos que flutuam até a boca voraz do tempo que nada explica e tudo transforma.
    Chove, e o dragão feroz que a tempestade liberta me deixa insone, afogando as palavras que não conseguem emergir.
    (Ludmila)

       

      Tempo de delicadeza

      21927_497261430304370_42883249_nMaio: mês das noivas, mês das mães. Mês feminino em sua essência de sonhos, rituais, festas, presentes e mais presentes!
      Penso em como as coisas mudam numa “velocidade estonteante”. Não, não vou censurar as festas nem falar de hábitos de consumo que, neste nosso nascente século XXI, interferem e se refletem até nos sentimentos. Eles também mudaram!
      Hoje, a maioria das noivas entra na igreja como se entrasse num show. Seu show particular. Antes, ensaios, lista de padrinhos, lista de presentes, testes de cabelo e maquiagem, escolha de cardápios, de trilha musical para a festa que precisa ser, no mínimo, apoteótica, superlativa, inesquecível, sob os aplausos dos parentes e convidados. Mas, a vida não é uma festa permanente, e a promessa de “até que a morte os separe” precisa mudar urgentemente para “até que a vida a dois os separe”.
      Pergunto então: mas o quê foi que deixamos ficar pelo caminho?
      Creio que os casamentos ganharam em glamour, mas perderam em delicadeza, magia, intimidade, na qual o amor deveria ser o principal protagonista.
      O mesmo ocorre com o dia das mães. São tantas as mensagens que falam de amor incondicional, tantas declarações pelo facebook, pelo WhatsApp, pelo twitter…que o sentimento se banaliza! Lojas comemoram o salto quântico nas vendas de presentes, floriculturas têm filas de espera, assim como os restaurantes onde as famílias, em peso, comemoram o dia dela: o dia da mãe!
      Críticas? Nenhuma! Apenas a constatação de que vivemos novos tempos em que aprendemos a demonstrar o amor, não mais pelo sentimento em si, mas como exigem as regras ditadas pela mídia.
      Pergunto de novo: Onde ficou a delicadeza de uma flor deixada junto à xícara de café, que surpreende e nos emociona em qualquer dia não marcado na folhinha? Onde o presente da simples presença, ali, curtindo o domingo sem qualquer compromisso, que não seja o de apenas estar junto, em harmonia, celebrando a grande dádiva de partilhar a vida junto a quem nos trouxe à vida?
      Parece que a emoção, hoje em dia, vivenciada unicamente na intimidade, junto a quem amamos, já não nos basta mais. Urge escancará-la, partilhá-la com o mundo inteiro, anuncia-la nas redes sociais, sob os holofotes de um grande evento, como que para validá-la: “Mundo, veja como eu amo e celebro o amor!”
      Ah! Que saudade desse tempo de pequenas afabilidades, invisíveis ao mundo, mas, ao mesmo tempo tão enternecedoras, trocadas de coração para coração, sem tantas testemunhas oculares. Um tempo que suaviza a alma, renova os votos, nos faz sentir vontade de voltar sempre à companhia amada, seja dos pais, seja dos companheiros, para revigorar os sentimentos e acreditar piamente que existe um tempo que “refaz o que desfez”.
      É o que penso. Abraços a todos!
      (Ludmila)
      Crônica Publicada na revista Absollut

          

        Estações

        301441_494894123856551_2144114589_n

        Ah, esse verão e seu calor materializando cheiros e suores ardentes e embriagando-me de luz. Essa quentura palpável que gruda na pele, que se corporifica numa espera pesada, sem vento, sem clemência, sem frescor. Essa estação repleta de pastos queimados de sol e de palavras morrendo de sede dentro da boca. Uma incandescência sem brisas nem concessões à uma sombra amiga, qualquer que seja. Uma febre que me transporta ao deserto em mim, a uma sonolência improdutiva, a essa dificuldade que as coisas paradas sempre provocam em nós. Uma inércia que se repete e me traz à lembrança outros tempos, onde, em meio aos pátios despidos da escola alemã de minha juventude, eu senti pela primeira vez esse entorpecimento. Era uma paisagem sem qualquer planta que a colorisse, com nenhuma sombra, nenhuma alma amiga para trocar confidências, ouvir e ser ouvida. Nela eu permanecia assim, letárgica, esperando passar mais um dia, e outro, e mais outro. Aquelas paredes caiadas de um cinza desbotado lembravam-me de meu próprio desalento e da dificuldade em aprender um idioma complexo que os pais obrigavam-me a estudar, deixando-me entregue à voragem daqueles dias de verão que transformavam palavras em letras ardentes ante meus olhos e os enchiam de lágrimas e de preguiça.
        Olho pela janela e pressinto camelos levantando o pó sobre a areia escaldante das dunas que se multiplicam e multiplicam numa paisagem minimalista sem qualquer promessa de um oásis. Quem sou eu, me pergunto, envolta neste sudário de linho cru, caminhando em silêncio pelas ondulações arenosas sob meus pés cansados que carregam um fardo de carne e ossos? E para onde vou? Existirá um bosque refrescante além desta vidraça?
        Dor? Nenhuma! Apenas a indiferença colorida por tons secos e um sol que às vezes é, simplesmente, um caleidoscópio multiplicando irradiações de tédio e de fastio. Assim como eu, a tarde indolente também se arrasta, cumprindo um itinerário de espera. Aguardamos, ambas, que a noite caia e nos resgate, e nos redima, e nos refresque, e nos envolva no estado de graça que traz em si. Ah! Essa leveza, essa bem aventurança de céu que finalmente reflete a luz fria da lua! Um céu repleto de estrelas e constelações. Ele abre-se sobre nós e brilha e nos conduz à quietude e ao silêncio, aos sonho e anelos. Esse céu que nos absolve das angústias e nos permite descansar…
        Aguardo a noite ansiosa, porque ela me permite a fuga, ainda que momentânea, de compromissos e rotinas, de desertos e caravanas, de dunas e camelos. À noite dispo-me de mim. Desfaço-me do peso de meu corpo, de suas tantas sinas e permito-me sonhar com oásis e lagos repletos de água cristalina. Com garças alvas e peixes azuis. E tâmaras e figos frescos. E riachos e cascatas. E o vento trazendo enfim a chuva benfazeja. À noite impregnada de tantos mistérios, escura e veludosa, eu peço que me acalente e me embale. E, contrariando os instintos primitivos que nos levam a hibernar no inverno, quero adormecer agora, neste interminável verão…e despertar apenas quando se fizer, de fato e de novo, o inverno. (Ludmila Saharovsky)

          

          Receita de escrever

          301441_494894123856551_2144114589_n
          Tão bom seria se houvesse receita de escrever! E não é que tem?
          Vou lhes revelar a minha!
          *Ter sempre à mão um lápis e um papel, porque o fermento da escrita cresce e transborda da gente a qualquer hora e em qualquer lugar, então, prevenir é sempre o melhor caminho!
          *Ter a certeza absoluta de que há muitos enredos dentro da gente. Escrever é apenas abrir a porta e permitir que eles saiam: livres, selvagens, indomados. Postos para fora, aí sim, caberá a nós colocá-los em ordem sobre os trilhos da história.
          *Um escritor precisa desenvolver também outros ofícios, que lhe permitirão trafegar com maior segurança pelo mundo das idéias. Por exemplo: Tem que saber ouvir o mar. O mar fala o “oceanez”, um dialeto dominado pelas gaivotas e pelas sereias. Não sei se os tubarões o compreendem, mas, os golfinhos, com certeza!
          *Conversar com as violetas também ajuda. Sabiam que as violetas, assim como todas as flores miúdas são poliglotas? Meu avô conversava com elas em russo. Agnes, minha amiga de infância, em francês. Eu converso mesmo no bom português, e elas respondem com buquês cada vez mais coloridos. Aprendi com as violetas, que o cravo nunca brigou com a rosa! Isso é intriga dos humanos, e dá uma bela crônica!
          *Um bom escritor precisa também, e sempre, olhar para o céu diurno e ler as histórias que as nuvens sabem contar como ninguém! Pegue a criança mais próxima a você ( pode ser, inclusive, a sua criança interna) deite-se num gramado próximo, ou na praia, ou no quintal mesmo, e deixe a nuvem guia-lo por castelos, florestas, celestes labirintos…A nuvem entra na cabeça da gente e nos deixa prontinhos para criar!
          *Ah! Numa receita de bem escrever, não pode faltar nunca a magia. Magia de capturar o cheiro da terra molhada após a chuva de verão, do salto do grilo trapezista, da organização das formigas, em fila indiana, levando gravetos para construir suas muralhas subterrâneas, do raio de sol anunciando o alvorecer (ou o anoitecer, tanto faz, desde que a gente o capture com o olhar) Nossa! Quantas histórias podem ser escritas observando o céu tinto de rosa e lilás!
          *E, um bom escritor precisará, urgentemente, abrir seu coração e alma para a poesia. Poemas usam metáforas, usam uma linguagem que modifica as palavras e nos permitem transgredir. Citando Rubem Alves (aqui faço uma observação: ter a companhia de escritores que nos inspiram, é um ingrediente importantíssimo nesse processo, pois são eles que, generosamente, deixam-nos entrar em suas criações e ter acesso à sua visão de mundo, o que nos fornece subsídios para criar a nossa própria receita) mas, citando Rubem Alves: “meu rio de pensamentos foi surpreendido por um peixe dourado que repentinamente saltou de dentro de suas águas e falou um poema – os poemas moram sempre no fundo das águas…” eu complementarei que, não só os poemas mas todos os escritos “moram sempre no fundo das água”!. Das águas de nosso oceano interno, tão rico, único, diverso e inexplorado.
          *Então, terminando essa receita eu direi a vocês: Um bom escritor precisa, com a máxima urgência, aprender a mergulhar!
          (Ludmila Saharovsky)

            

            Em nome do Pai

            1204-140-SuperStock
            De meu pai russo, além dos anticorpos que me afastam definitivamente de toda e qualquer bebida destilada (que ele consumia prazerosamente) herdei uma biblioteca dos clássicos russos, escritos no idioma original: Tolstoi, Lermontov, Dostoievski, Pushkin, Gogol, Anna Ahmatova, Marina Tsvetaieva.
            Afastada da pequena colônia que ainda sobrevive em São Paulo, busco neles o exercitar da língua mãe, receosa de esquecer expressões e palavras. Tenho comigo que olvidando meu idioma natal, o sentimento de orfandade se abaterá muito mais forte, tornando-me estrangeira dentro de mim mesma, turista acidental perdida numa memória que, se não bem vigiada, irá esgarçar-se sem possibilidades de restauro. Os livros trazem-me de volta a uma dimensão de luz na qual as palavras materializam-se em vozes, em comentários tão familiares, em frases ouvidas dezenas de vezes, impregnadas de significados que preencheram minha infância: Nomes próprios, apelidos, evocações, provérbios, costumes. Só quem domina um idioma por origem, e dele é afastado, saberá do que estou falando. Mas, o pai relia incontáveis vezes Guerra e Paz, Anna Karenina, Irmãos Karamazov, e também as aventuras completas dos Três Mosqueteiros e O Homem da Máscara de Ferro de Alexandre Dumas, vertidas para o russo. Volta e meia eu o surpreendia mergulhado nessas obras que ele qualificava como sendo “de grande fôlego”, cujos personagens passaram a fazer parte integrante de seu cotidiano, habitando-o com a desenvoltura íntima de quem já faz parte da família. O interessante é que Wladi (jamais chamei o pai de pai, e sim pelo diminutivo de seu nome próprio, Wladimir) mergulhava nas histórias e emocionava-se com elas como se as lesse pela primeira vez. “Será que você avalia, perguntava-me ele, as características tão peculiares à alma russa, imersa desde a mais remota idade, em batalhas físicas e morais…uma alma coletiva empolgada e arrebatada, moldada por uma religiosidade de entrega e temor a Deus, de súplicas de redenção e arrependimento pelas falhas humanas cometidas em momentos de covardia? Veja Tolstoi, por exemplo, um homem de educação refinada, um conde, um visionário, um profeta cuja fama atravessou fronteiras, o idealizador da política da não violência, lido e citado inclusive por Gandhi. Um escritor de cuja mente saíram romances inesquecíveis! Você sabia que ele viveu por cinqüenta anos atormentado por uma relação tempestuosa com sua mulher, entremeada por ameaças de suicídio e desaparecimentos, em meio aos quais geraram dezesseis filhos e morreu ancião, na estação de Astropovo, não longe de sua casa em Iasnaia Pollina, fugindo de sua Sofia Andreievna? Quem consegue explicar tamanha loucura?” Eu ouvia as histórias do pai atentamente. Era melhor que qualquer filme, qualquer novela. Sua admiração pelos escritores russos extrapolava os limites das obras criadas. Ele devorava também suas biografias, tentando acompanhar a lógica do pensamento de cada um, sua doutrina política, as angústias existenciais, como uma forma até, eu quero crer, de desculpar as suas próprias e inúmeras fraquezas. Quando o levei para o hospital, abatido pelo cansaço de viver, ele absolutamente aceitou qualquer trégua. Naquela manhã, ao lado da mesinha de apoio do sofá da sala estava aberto o romance Ressurreição. Nele, Tolstoi procurou criar um novo homem, com maior lucidez, tentando conduzir os povos a uma harmonia utópica, a uma ética que, infelizmente, só se concretizou nas ficções. Wladi partiu há quinze anos, quem sabe em busca da realização de todas essas utopias tão peculiares à alma russa, ou, quiçá, à todas as almas sensíveis de qualquer parte desse mundo, que hoje tanto me amedronta! Que saudade, meu pai!
            (Ludmila Saharovsky)

              

              Drummond para todos

              Drummond_

              Nessa caliente Copacabana, onde há choque de tudo no espaço, e onde mineiros importantes ou não, perambulam, ou se exercitam, ou observam, ou se ocultam, foi bem cravada a estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade. Ela foi o inicio de uma serie de esculturas desse tipo por aqui – uma volta ao figurativo, de leve. O expressionismo, ou outros estilos, deram uma recuada, e a tendência é mundial – a arte para o povo tem de ser a arte que ele entende, e agora? Li uma entrevista de escultor mineiro, de tendência moderna, que alega viver de experiências.Tudo bem. E acrescenta que as experiências com a arte dizem respeito a ele só, e ponto final, “só ao artista interessa”. Eu não sei, mas por mais que tente não entendi. Sempre se sonha com a arte do povo, para o povo com o povo. Do jeito que a coisa vai, um dia, a gente tem de largar o elitismo, os requintes,as complicações, e tudo que é vivente vai poder pintar, esculpir, musicar, e filmar pelas ruas como bem lhe aprouver. Me lembro, como cita Ernst Fischer, sobre o pintor Mondrian, que prediz o possível “desaparecimento” da arte.” A arte desaparecerá na medida em que a vida adquirir mais equilíbrio” diz. O povão abraçou direto a mimese, gosta do velho poeta, sentado, de pernas cruzadas, óculos bem pessoais, olhando a Av. Atlântica. Pivetes já lhe furtaram esses óculos, mais de quatro vezes – são de bronze, e aquilo rende uns tostões pra comprar droga. Já vi ali, seres incríveis, em catarses inéditas. Um tipo africano angolano talvez, espanava todos os dias, hora certa, e monologava. Um mulato de barba, espera acabar a seção, e entra em cena. Diz que conheceu o poeta, que ele lhe dava uns trocados, tem direito a fazer a conserva. Cara amarrada, usa uma flanela surrada, rebrilha as curvas do metal, e canta. Sai o mulato, entram três moças do sul, lindas, alvas, sem sol do Rio na pele. Puras de graça e encanto, encostam as carinhas, umas nas outras – a da esquerda deita-se no ombro de Drummond, e um acompanhante bate a foto. Depois, vem a mim e pede que tire dos quatro. E é a hora do bebum, brabo, sem nome sem profissão, sem documento, traz um pano sujo. Ele cheira mal a distancia, e se achega a Drummond. Grudado, mediúnico, fala desconexo, pé descalço de unhas grandes, roupa em frangalhos. Grupo de turistas é afugentado, impossível tirar foto. Agora o poeta é dele, e só dele. Pensadores dizem que mendigos andam sujos, pra espantar gente, pra distanciar os homens. Mendigos têm uma imunidade natural, disse-me um psiquiatra – violonista e meio louco. Lembro-me da figura de Fernando Sabino, que eu avistava coincidente em horário de caminhada – sempre de sunga, só e caladão, pela ciclovia, parando invariavelmente pra ver esse bailado em volta do conterrâneo. Tal como a praça, a estátua do poeta ali é do povo, absorve suas aflições. Alguns desses bêbados, ou os que nós ousamos julgar alienados, muitas vezes se apossam do banco de Drummond, dispostos a ficar. Sendo grande a demanda pra fotos, chama-se logo um guarda municipal, que mata a pureza do colóquio. Aí, somente o mar do Posto Seis, ali em frente, num hiato das ondas, testemunha esse instante único, em que só um anjo de metal, foi capaz de acolher o indesejável, e lhe ouvir em silencio.
              Copacabana – Janeiro de 2008
              (texto de Fabiano Mauro Ribeiro)

              04_MHG_drummond_joseconde

              Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...