Porque é dezembro

O mês de dezembro está aí, a mexer com todas as emoções.
As cidades vestem-se de luzes, as lojas transbordam de pessoas. Uns amam dezembro, outros odeiam. Cada qual, certamente, possui seus motivos e razões.
Eu ainda não me decidi. Sei apenas que dezembro é um mês diferente. Tenho onze anos e toda a cidade me pertence. Sem pai nem mãe, perambulo pelas ruas, como se fizesse parte de uma realidade virtual. Tenho tudo e nada, ao mesmo tempo. É como se eu protagonizasse um filme, sem fazer parte do elenco. Eu não estou na paisagem. Eu sou a paisagem. Sou como um poste, um paralelepípedo, um orelhão, um banco de jardim, uma árvore, um cão vadio. As pessoas, de tanto me verem já nem me enxergam. Passam por mim, os olhos perscrutando vitrines, ofertas, preços. Meus olhos, não. Eles, há muito, separaram-se de meu corpo, com suas vontades e seus desejos. Aprendi cedo que vitrine é o lugar onde ficam as coisas que jamais terei.
Acostumei-me a olhar sem desejar, observar o mundo sem frustrações nem medos. Nada tenho a perder pois nada de meu possuo. Democraticamente, onde vivo, tudo é nosso, e nada é nosso. Às vezes, penso que sou apenas um par de olhos sem corpo, pousados sobre um cotidiano no qual não me incluo.
Faço parte dos excluídos, e para mim, a vida que levo é a normal. Também, jamais tive outra…Sem parâmetros, as escolhas ficam bem mais fáceis.
Apanho um naco de pão aqui, bebo um resto de suco ali, e assim vou mantendo minha carne grudada aos ossos. Apesar da idade, já tenho minha própria rotina. Durmo sob qualquer marquise. Conheço os bueiros mais seguros, os mendigos mais fraternos, os veados que não molestam crianças. Sei a hora das rondas e o momento exato em que o lixo comível vai para defronte as lanchonetes. Deixo minha latinha sempre no mesmo buraco do muro da padaria, onde o portuga, meu amigo, deposita restos de empadas e, vez por outra, um naco de presunto. Aprendi a sobreviver da economia informal: aproveito cada migalha; cada trapo me serve de vestimenta, cada saco de cobertor, cada cartolina de telhado. Vivencio meu dia-a-dia, com quase nada de recursos. Sou o administrador dos desperdícios alheios.
Mas em dezembro…ah, em dezembro as coisas mudam. É como se à minha frente se abrisse um grande túnel de luz, e essa luz me envolvesse e me tornasse mais e mais visível aos olhos dos passantes.
Talvez seja porque em dezembro, as pessoas voltem para suas infâncias e tornem-se mais puras, mais vulneráveis e fraternas; pensem mais nos seus e nos outros, aproximem-se mais de Deus. Assim, em dezembro, eu me torno este outro. Um outro que precisa ser visto, que pode ser amparado, cuidado, assumido, presenteado.
Um outro que, de repente, com sua presença pouco asséptica, incomoda a alegria do Natal, estraga o prazer da festa.Um outro que, momentaneamente, desperta nas consciências, o pressentimento de que algo precisa ser modificado nesta cidade de tantos excluídos. Um outro que lembra que, apesar dos presentes, das ruas iluminadas, das lojas repletas, existe sua presença inquietante demonstrando o quanto a pobreza ainda faz parte do contexto. Prova máxima da falência de qualquer espírito cristão. Feliz Natal? Pois é…Feliz Natal!
(Ludmila Saharovsky)
crônica publicada no jornal Diário de Jacareí

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    3 pensamentos sobre “Porque é dezembro

    1. Não sei se gosto mais do que escreve, ou do que responde!
      Este seu espaço é um lugar onde gosto muito de ficar. Obrigada e um grande abraço!

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