Páscoa




(ovos de madeira pintados “pisanki”)

Confesso! Há épocas do ano em que me sinto muito antiga. Fico como que desfocada, totalmente excluída desta realidade que me envolve.Tento mergulhar na rapidez do tempo presente, na evolução humana, cada vez mais consumista, mas algo me arrasta inexoravelmente ao passado. É feito uma nostalgia: Uma saudade que surge devagarinho e quando me dou conta, ela já se instalou e pronto: Entro no túnel do tempo e regresso à minha infância! E é sempre durante a Semana Santa que tenho as piores recaídas. Esse período chega despertando em mim uma solenidade, uma seriedade, um mistério que hoje não mais se vivenciam. No antigamente, tudo ficava severo, vagaroso e triste nestes dias. O martírio de Jesus refletia-se nos lugares, pessoas e costumes. O silêncio era mais denso, o luto materializado. Eu e minha família assistíamos à missa todas as noites, no monastério ortodoxo de Vila Alpina. Ouvir a leitura dos evangelhos no templo aconchegante iluminado apenas pela luz de velas, o insenso acalmando os sentidos, resultava num consolo mágico à alma dos que acompanhavam o drama da traição. Aquela, perpetrada por um dos discípulos queridos do Mestre e a negação, por três vezes, de outro. O julgamento de Poncio Pilatos, lavando as mãos num gesto que o eximia de qualquer culpa, a Via Crucies percorrida sob o peso da cruz e chibatadas, o terror da crucificação, do coroamento com espinhos eram novamente vivenciados por nós. A noite surgindo em pleno dia sobre o Gólgota, a cortina do templo rasgando-se de alto a baixo, a lança perfurando as vértebras, a descida do corpo morto, o sudário. A pesada pedra selando o sepulcro. Esse enredo permeava de angústia meu coração que doía e se apertava em nó no peito, por tantas crueldades perpetradas contra um inocente. Os aparelhos de rádio e de TV. permaneciam desligados na maioria das casas. O máximo que se permitia era assistir aos filmes bíblicos, reprisados a cada ano, com Débora Kerr, Victor Mature, Charlton Heston, Jean Simmons, sobre a Paixão. Paixão de Cristo. Carne não se consumia, e não apenas na Sexta-Feira Santa, mas durante toda a semana. Os mais devotos passavam sem ingerí-la, a quaresma inteira. Finalmente, para o alívio dos fiéis, chegava o Sábado de Aleluia: Jesus estava prestes a ressuscitar, e, pelas ruas dos bairros procedia-se a malhação do Judas.Pobre Judas! Em inúmeros postes ele era amarrado e espancado até a completa destruição, quando as palhas soltavam-se de suas entranhas de trapos. Que ritual! Parecia que, espancando o delator com as próprias mãos, finalmente a justiça era feita! Absolutamente ninguém se lembrava do “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” que o próprio torturado suplicara naquela longínqua época. Mas, o mistério dos mistérios, para mim, eram os ovos de coelho. Eles surgiam multicoloridos, em ninhos, na maioria das casas, como por encanto. Nunca conseguiram explicar-me, que relação havia entre ovos de chocolate e a Ressurreição. E de coelhos ovíparos, ainda por cima! Recentemente, li que esta tradição é celta, e liga-se a Eostre, deusa da vegetação e do renascimento.Mas, a quem, realmente, isto hoje interessa? Vivemos um tempo em que mistérios caíram em desuso. Como toda a tradição desta dolorosa Via Crucies que um dia nos redimiu…(Ludmila Saharovsky, crônica publicada no Jornal Valeparaibano)

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    5 pensamentos sobre “Páscoa

    1. Olá Lud!! Obrigada pela visita e elogio aos meus Paparicos.

      Gostei muito do seu jeito de escrever… suave, porém com a intensidade sutil que alguns jornalitas sabem ter.

      Bjinhos e parabéns

      Ale

    2. Sexta-Feira da Paixão
      quando era pequena, na sexta-feira santa tinha uma procissão à noite que passava na esquina de casa.

      todos em silêncio, a imagem de Cristo morto no caixão carregado por homens com túnicas roxas, as pessoas que acompanhavam a procissão usavam roupas pretas e as mulheres véus pretos, carregavam velas.

      tinha uma mulher que representava Maria Madalena, de quando em quando a procissão parava, a mulher subia num banquinho e enquanto ia desenrolando um pergaminho que tinha o rosto de Jesus (não me lembro o nome daquilo, sabem o que quero dizer, né?), ela cantava uma música triste quase chorando, era muito triste mesmo.

      no final da procissão um homem tocava a matraca, era o que se ouvia além dos passos no paralelepípedo, uma sensação impressionante para uma criança, eu tinha medo, mas adorava ir ver.

      eu também não entendia e não entendo até hoje o que é "Paixão de Cristo"

      lembro também que as 3 horas da tarde da Sexta Santa na igreja Matriz tinha a 'morte de Cristo", íamos todos à igreja, na frente do altar coberto com uma cortina roxa tinha as 3 cruzes, Cristo e os dois ladrões.

      depois das 3 da tarde desciam Jesus da cruz e o colocavam num caixão e as pessoas faziam fila para colocar flores no caixão, todos os anos eu ia com minha avó, ela me levantava para olhar dentro do caixão o Cristo morto e ensanguentado com a coroa de espinhos, essa visão me perseguiu pela minha infância…

      nesse dia não podia ligar rádio, televisão, nem cantar podia
      era dia de jejum, mas na minha casa sempre tinha peixe que meu pai pescava, morávamos na beira do rio
      outra coisa que podia comer era paçoca de amendoim com banana, minha avó passava o dia só comendo isso, a gente comia paçoca toda a semana santa, minha mãe fazia uma quantidade enorme e guardava em latas, ah… como era bom!

      estou lembrando de trás pra frente…

      antes da morte de Cristo as 3 da tarde tinha os Passos do Calvário, na igreja tinha nas laterais quadros em alto relevo com os passos de Jesus a caminho da crucificação, o padre ia de um em um contando a história de cada parada de Jesus, as pessoas acompanhavam em silêncio

      na noite anterior tinha o lava-pés, o padre lavava os pés dos coroinhas, outra cerimônia que ninguém perdia na pequena cidade do interior

      Boa Páscoa!
      beijo
      Ju

    3. Obrigada, Ju, por dividir conosco a riqueza de suas lembranças. Eram outros tempos, outros comportamentos…Hoje, feriado de Páscoa, as estradas cheias, as lojas de chocolate com filas dobrando as esquinas, os supermercados que não se pode nem entrar de tanta gente…O drama da Via Crucis, virou espetáculo teatral pra turista. Não sei, acho que pertencemos a outra época, mais rica em sentimentos e devoção, quando o Sagrado realmente nos tocava! Beijos e Feliz Páscoa pra você também!

    4. Oi, Lu, acho que o tempo vai nos tornando mais nostálgicas e as lembranças que nos marcaram nessas épocas voltam sempre mais fortes. Qdo pequena, havia toda uma tradição. Como filha de mineiros super católicos, não se podia cantar, xingar, rir alto e outras coisinhas que, para crianças, era uma tortura, mas nós respeitávamos com reverência!!! E, ligado a tudo isso, tinha o cheiro do amendoim torrado e socado no pilão, nossa melhor iguaria. Pq não havia ovos de páscoa e nem bacalhau numa família de 10 filhos(eu, a caçula…rs). E não fizeram falta, hj tenho td isso de sobra mas morro de saudade da paçoca com banana daquele tempo…
      Vida boaaaaaaaaaaaa, meu Deus. Não é?
      Tenha uma ótima semana!!!
      Bjssssssssssss

    5. Ah, Veronica, nem fale!
      As nossas tradições tem um valor incalculável pois nos dão uma identidade própria, nos diferenciam nesse mundo onde a globalizalção massifica tudo o que toca, não é mesmo…Beijos!

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