Dobras do tempo


(Naufrágio do Minotauro óleo sobre tela de Joseph Mallord William Turner(23 de Abr 1775 – Dez 1851)

Aquele som…Era a quarta ária, que ela considerava a mais solene e triste da “Paixão de Nosso Senhor segundo São João” de Bach. Chovia. Talvez fosse melhor trocar o CD, cujos acordes densos contribuíam para materializar tantas lembranças e saudades naquela sala… Mas não! O cenário era perfeito para a peça que tocava e, pela primeira vez em longos anos, ela deu-se conta de como o tempo passou. Olhando para o antigo quadro que reproduzia um naufrágio à sua frente, sentiu-se agarrada também aos escombros daquele navio, perdido num mar de sargaços… A questão, agora, era saber se sua vida valera a pena, pensava, o coração inquieto como nunca… Pôs-se então a avaliar minuciosamente a trajetória que a trouxera até ali, tentando descobrir algum segredo, algum vinco que ficara na memória, retendo informações ocultas e preciosas que necessitava trazer à tona para se aquietar, para se fortalecer. A chuva forte, com relâmpagos iluminando o céu precocemente escurecido às quatro da tarde abatia-se sobre sua alma, envergando-lhe o corpo, repentinamente transformado em frágil pinheiro, balançando indefeso ao sabor do vento. “Hoje você não irá ao colégio” ouviu a voz familiar do avô ecoando de uma dobra do tempo.” Chove muito…não vale a pena sair e molhar-se tanto!” Na sala aconchegante pairava, como de costume, o delicado aroma do chá de maçãs e geléia de morangos… a chaleira gorjeando sob o fogo brando. Ela trocou rapidamente o uniforme, calçou os chinelos de feltro xadrez e correu feliz à janela para espiar os riachos de água que transbordavam das valetas cor de terra, na rua de chão batido do bairro em que viviam. Chovia fora e dentro de casa. Incontida, a água adentrava pelos cômodos vinda da calçada, e também pelas goteiras aparadas por baldes e bacias, que ecoavam pelos cantos em sonoros plinplons compondo uma sinfonia minimalista. A avó esbravejava como de costume: contra o dilúvio, contra a lama que teria que lavar do exíguo terraço, contra as árvores que com as folhas miúdas entupiam as calhas, contra o velho telhado esburacado… Já a menina e o avô adoravam tempestades! Quanto mais fortes, melhor! Era quando ambos, cúmplices, perscrutavam o céu iluminado por relâmpagos e viajavam: Ora conseguiam vislumbrar gigantescas catedrais de arquitetura gótica, em cujas torres cinzentas recortavam-se os perfis dos gárgulas que as guardavam, ora enxergavam o próprio Demiurgo, conduzindo sua carruagem e encobrindo o céu com seu violáceo manto…. O quadro do naufrágio documentava um céu assim: a tempestade em meio ao oceano e alguns sobreviventes agarrados a um tosco mastro no mar escuro. Sempre que chovia, como agora, seu olhar aflito pousava naqueles viajantes… Até quando resistiriam? Não se aflija… O avô a acalmava: Um outro navio está a caminho e os recolherá… Serão todos salvos! Ela acreditava e se aquietava. O som prosseguia espalhando Bach por aquela sala. A chuva ficara mais amena e ela, hipnotizada pelas notas, pela pintura que a acompanhara pela vida afora e também pelas lembranças, agarrava-se fortemente aos escombros de seu próprio mastro à deriva. Foi quando, da dobra do tempo, a voz firme do avô a trouxe de volta ao presente. “Olhe para o horizonte, a tempestade se acalma….E lá está o navio que se aproxima… Então, feito um milagre, o céu tinto de nuvens, se abriu…….(Ludmila Saharovsky para o Jornal Valeparaibano)

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