Sobre a arte de pintar ícones
“Como conseguir essa milagrosa transfiguração sobre a prancha de madeira? Trata-se de um segredo do qual só se pode falar com uma espécie de medo sagrado, pois esse segredo poderá ser retirado daqueles que o explicarem demais. O corpo sobre o ícone vai resplandecer e se transfigurar, uma vez que, possuindo um mínimo de conhecimentos pictóricos, o pintor estará ele mesmo em vias de se transfigurar através do jejum e da oração. E o cânone que prescreve o número e quais preces é preciso dizer todo dia, antes de se aproximar da prancha de madeira, é tão importante, senão o mais importante. E o próprio trabalho do pintor de ícones se completa numa autêntica prece ininterrupta a Jesus”.
* Liubímov, L. , (A Arte da Antiga Rússia). Moscou1996
O incomensurável talento do avô para a pintura remetia nos sempre à pequena oficina improvisada num pequenino aposento ao lado de nossa cozinha, onde ele passava horas preparando as tintas de forma artesanal.
“Os antigos mestres descobriram que se você misturar a gema do ovo com pigmentos naturais, conseguirá uma tinta que não perde a cor original e nem racha com o passar dos séculos. Ela chama-se têmpera” me explicava, enquanto cuidadosamente separava a clara da gema e retirava a fina película que a envolvia, recolhendo numa cuba de vidro seu cremoso volume alaranjado. A ele acrescentava igual quantidade de água. Eu participava pingando com o conta-gotas um óleo que recendia a cravo: Para evitar o bolor. Vagarosamente, com o auxílio de uma fina espátula de madeira, o avô acrescentava pequenas quantidades de pigmento em forma de pó e misturava tudo até o ponto de emulsão. O cheiro bom de cravo impregnava-se no ambiente, em nossa roupa e em nossos cabelos pelo resto do dia. Os potes coloridos eram hermeticamente tampados e guardados em sua caixa de pintura. Nos dias que se seguiam, nossa rotina era percorrer as redondezas em busca de pranchas de madeira maciça que serviriam de suporte para a pintura sacra. Percorríamos velhos depósitos de peças de demolição, oficinas, marcenarias, até encontrarmos algumas peças que lhe pareciam apropriadas. O processo de seu preparo também obedecia a um curioso ritual. Primeiro a madeira era umedecida e deixada ao sol, para ver se não envergava ou rachava. Em seguida era lixada inúmeras vezes e impermeabilizada com uma mistura de cola e gesso. Imaculadamente branca e lisa, era deixada sobre o cavalete aguardando então que o avô se preparasse. Antes de mergulhar no trabalho, ele se purificava através de jejum severo e orações. Andava pela casa como se flutuasse…os pés mal tocando o chão. Os olhos pareciam afundar-se mais nas órbitas, as faces encovadas… Os lábios murmurando incessantes ladainhas. Confessava e comungava todos os dias. Pertencia, nestes períodos a um outro mundo que eu pressentia, mas não conseguia penetrar. Era como se uma força-espírito o tomasse e o preparasse para a criação. Quando, finalmente, sentia-se digno e espiritualmente disponível, entregava-se à obra. Pela força de sua arte, a tinta transformava-se em pálidos semblantes de corpos diáfanos, circundados por auréolas, rodeados por querubins e serafins, anjos e arcanjos. Eram desenhos simples, bidimensionais, seguindo cânones que não mudaram por séculos.
“Olhar um ícone é remeter-se ao sagrado. É sentir a presença de Deus”.
Ah..(1).dedushka…também quero pintar como você…Porque não me ensina?
“Esta é uma tarefa exclusiva de homens. Nunca uma mulher pintou a face de um santo, nenhum afresco, nenhum (2) iconostas”…
Eu o ouvia e me entristecia!
(1) diminutivo de avô
(2) parte frontal do pórtico de entrada para o altar dos templos ortodoxos e que recebe a pintura de inúmeros ícones
(Ludmila Saharovsky – fragmento de Tempo Submerso)
O ícone acima é o da Santíssima Trindade do monge Andrei Rublev. Têmpera sobre prancha de madeira
Tenho lido alguns capítulos desse seu livro no seu blog. Quando ele será lançado? Antonio Luis
Olá Antonio Luis! Obrigada por seu interesse.Espero lançar meu livro até o final deste ano. Ele já foi revisado e está indo para diagramação. Vamos torcer para que tudo aconteça no tempo previsto. Abraços!
Arte sublime e maravilhosa !
Muito grata por partilhar.
ZZ