São José dos Campos 243 anos


foto:Sanatório Vicentina Aranha retirada do site http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=646868

Era em São José dos Campos
Conheci S.José dos Campos no início da década de sessenta, numa das internações de meu avô por conta da tuberculose. A casa principal do Sanatório Vicentina Aranha era soberba e, a meus olhos de menina, aquelas alamedas tão floridas e arborizadas lembravam tudo, menos uma casa de saúde. Vir de São Paulo, de Pássaro Marrom, de manhãzinha, a neblina encobrindo toda a paisagem, o sol surgindo mansamente dali, de trás das montanhas, era um prazer que atenuava um pouco a saudade e a falta que o avô me fazia. Ele, padre ortodoxo, logo se distinguia, sentado no banco de madeira: a inconfundível batina negra, o cachecol, em tons de cinza, enrolado no pescoço e um gorro estranho, de veludo bordô, protegendo os longos cabelos brancos. Era uma figura! Uma figura alta, pálida e magra, sempre pronta para embarcar em direção à Eternidade… À cada crise que o avô sofria (a tosse, a perda de fôlego, o sangue em golfadas vermelho-vivas manchando a alvura das toalhas, depois incineradas) o medo de que fosse a última, transporta-me para uma geografia de assombros, que percorríamos de mãos dadas, meu coração aos pedaços, sua voz calma explicando-me a tênue linha que separa a vida da morte, que tantas vezes se cruzavam…e aquele jardim! Medo? Medo de morrer? E por quê, se ele já vivera tanto! Tanto que não pertencia a lugar algum na imensidão da terra, exilado de tudo que lhe fora caro! Não pertencia aos sonhos nem aos pesadelos que há muito o deixaram. Não havia mais tempo para somar, multiplicar ou modificar o já vivido. Mas, haveria sempre tempo para a poesia…Aquela, que eu deveria aprender a reconhecer nas entrelinhas da vida, e que viria em meu socorro sempre que eu a buscasse: no rastro das estrelas ou das formigas, no sibilar do vento entre os arbustos ou nas águas de riachos, no cantar do galo anunciando as manhãs ou do bem-te-vi em vôos rasantes sobre as azaléias… Ah! E quando ele se fosse, haveria tantos livros que me fariam companhia em todas as viagens, trazendo testemunhos de outros fantásticos personagens , que eu nem sentiria sua falta! “Nós passamos pela terra como o vento. E através do último sopro entramos para a eternidade, onde tudo é luz, onde a vida prossegue com seu acervo de infinitas possibilidades…”
Traços de nuvens roxas, montanhas verdes, vento frio de julho prossegue soprando forte entre os muros daquele sanatório em São José dos Campos, espaço hoje revitalizado e aberto à população como um grande parque. Não, não é possível perder esse referencial gravado na alma, que o caos urbano, aos poucos, tenta engolir… Cidade é presença e memória, é geografia humana e paisagem. Uma cidade existe também edificada por lembranças: quem vive nela necessita dos cenários deixados por aqueles que já se foram: um casario, uma estação de trem, um arvoredo, o rendilhado da serra, o vale aberto para o espetáculo do sol em seu crepúsculo às margens do rio. Os habitantes precisam abrir suas janelas e perceber que a vida invade o tempo com suas alegrias e tristezas, seus personagens repletos de histórias e experiências. E também pela poesia: “Era em São José dos Campos./ E quando caía a ponte/ eu passava o Paraíba/ numa vagarosa balsa/ como se dançasse valsa./ O horizonte estava perto./ A manhã não era falsa/ como a cidade grande./ Tudo era um caminho aberto./ Era em São José dos Campos/ no tempo em que não havia/ comunismo nem fascismo/ pra nos tirarem o sono./ Só havia pirilampos/ imitando o céu nos campos./ Tudo parecia certo./ O horizonte estava perto./ Havia erros nos votos/ mas a soma estava certa./ Deus escrevia direito/ por pequenas ruas tortas./ A mesa era sempre lauta./ Misto de sabiá e humano/ o meu vizinho acordava/ tranqüilo, tocando flauta./ Era em São José dos Campos./ O horizonte estava perto./ Tudo parecia certo/ admiravelmente certo” ( de A flauta que me roubaram – Cassiano Ricardo)
É São José dos Campos, tudo é um caminho aberto e que tudo prossiga, para sempre, certo!
(Ludmila Saharovsky crônica publicada no jornal Valeparaibano))

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