Uma casa num inverno

Em nossa casa embrionária, não divisei sala nem quartos, mas pressenti conversas longas no sofá sob a janela, avistando hortênsias e ciprestes que alguém, antes de mim, tivera a idéia de plantar.Inexiste nela, ainda, o cotidiano pó sobre o verniz dos móveis não adquiridos, nem marcas digitais pousadas em translúcidas vidraças,
nas porcelanas finas, na fragilidade tênue dos cristais. E a lenha para alimentar o fogo da lareira sequer foi recolhida. Mas, no futuro, à noite, a porta ampla de madeira fechará o mundo e seus ruídos lá fora, enquanto o silêncio das coisas, tantas, habitará dentro de nós… De nós sim, porque você será meu convidado.
E eu não tentarei romper o muro de individualidade, do qual você tanto necessita. Respeitarei seu campo, espaço e tempo. Imaginarei uma certa magia, um mistério que ficará pairando acima da relação homem/mulher e que não se desintegrará na intimidade, no dia a dia, nas rotinas sufocantes, nessa mecânica corrosiva
do vir a ser a dois. Não. O destino não nos alcançará com seu dedo sempre em riste, indicando caminhos, rotas de fuga, cantos solitários, palcos, disfarces, como já fez e continua fazendo, com tantos outros casais perdidos em feudos possessivos que corroem corpo e alma. Por isso a casa continuará sempre e apenas nos projetos.
Se concluída, certamente, tornar-nos-íamos íntimos demais de sua arquitetura,e o encantamento, para sempre, iria se perder.Assim, a cada noite, exercito-me em ouvir o degrau rangendo, precedendo seus passos que adivinho, enquanto trato de demarcar,
para sempre na memória, a sólida fronteira:
A materialização da casa, posse do mundo
O seu anelo, posse nossa.
(Ludmila Saharovsky)

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