Rebanho alado

As abelhas eram a aura do avô. O prolongamento de sua energia vital materializada. Cercavam-no como pequeninos satélites ou cometas, irradiando luz e som próprios, naquele cenário sempre verde de minha infância povoado por vôos e zumbidos. À distância, era difícil separar seus corpos, que formavam singular anatomia. Os cabelos longos do avô adquiriam adornos sibilantes, assim como a barba. Ombros, colo, pernas eram uma única colméia. Somente quando uma delas afastava-se e pousava em minha mão amortecida para não assustá-la, é que eu conseguia decifrar-lhe o corpo curvo, aveludado, as listras amarelas enfeitando o dorso, o tronco fortemente acinturado, a cabeça coroada de antenas e o longo ferrão, que penetrava na intimidade das flores em busca de alimento. Eu me sentava em meu banquinho, pintado de azul celeste e passava as tardes vendo-o extrair dos favos, aquele licor opalino que gotejava com aroma peculiar e indescritível. Uma cortina de asas acompanhava o ritual, onde não faltavam nuvens de fumaça espargidos por um defumador. “Para não enraivece-¬las”, o avô dizia mansamente. “Afinal estamos desviando seu estoque…” Eu mastigava os favos até perderem o ínfimo resquício de dulçura, enquanto observava aquele homem alto e arcado recolhendo o mel em largos potes transparentes. Alguns favos escorriam em peneiras finas, outros, partidos, iam para os vidros, tudo embalado por zumbidos que ecoavam numa estranha melodia minimalista. O avô parecia que nascera de uniforme, como suas operárias: a camisa branca de mangas já puídas, calças negras desbotadas e o eterno e longo avental que recendia à cera. Por onde quer que ele andasse no jardim, as abelhas o seguiam: pastor de um rebanho alado; proprietário orgulhoso de milhares de ferrões e asas. “De onde vêm as abelhas, dedushka?” Pacientemente ele me trazia ao colo e traçava sobre as folhas de papel, que revestiam a mesa, desenhos pentagonais de mágico relevo, formando estranho labirinto. Eles reproduziam a engenharia dos insetos, a geometria das colméias. Arquitetura milimetricamente planejada, na espessura certa, composta por câmaras lacradas, algumas contendo néctar, outras óvulos fecundos que gerariam machos, operários, soldados estéreis e rainhas. “E elas conversam?” Eu lhe perguntava. “Conversam…” “Com você também?…” “Comigo principalmente. Eu lhes conto que você é a minha princesa. Precisa comer bastante mel para um dia transformar-se em rainha…” Eu arregalava meus olhos amarelos e acreditava piamente nas histórias que o avô contava. À noite, em sonhos, viajava por bosques distantes, por palácios construídos de cera com infinitos aposentos guardados por soldados alados, cuja localização perdeu-se para sempre em minha infância. É que cresci depressa demais e em vez de rainha, transformei-me em laboriosa operária, que precisa diariamente garantir o sustento dos seus, infelizmente, sem a doce vigília das abelhas.
(Ludmila Saharovsky)

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    2 pensamentos sobre “Rebanho alado

    1. Eu gosto muito de escrever sobre minha infância. Meu avô foi muito importante na formação de minha personalidade. Saudades, meu avô…saudades!

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