Diários Imaginários 2


(Caminho Inca, Perú)
Terminava maio de muitas chuvas e uma lua quase cheia protegida por biombos de nuvens brincava de esconde-esconde pelo céu.
Na entrada da distante vila, perdida no topo das montanhas, uma estreita picada aberta em meio à alta vegetação separava as toscas casas de madeira do secular muro revestido por um musgo azulado. Ele unia as largas pedras formando um inusitado mosaico em alto relevo, repleto de luz e sombra que se intercalavam em seu próprio e descontinuado ritmo. Em toda sua extensão, centenas de cruzes feitas de madeira e unidas por um tríplice nó de capim seco brotavam da terra, indicando que aquele era exatamente o caminho a se seguir. Havia também muitos arbustos que serviam de pouso para os diurnos pássaros e borboletas e os noturnos grilos e corujas. E uma pequena vala, impermeabilizada por grossa camada de limo e sempre preenchida pela água de uma tímida nascente subterrânea delimitava o cercado, emprestando-lhe, naquela noite, um brilho particular. Eu mal distinguia o som de minhas próprias passadas, abafado pelo latir dos cães e pelo farfalhar do vento. Precisava encontrar logo as largas colunas de madeira, entalhada de símbolos, que sustentavam o pesado portão, e adentrar naquele espaço buscado há muito tempo. Por instantes pensei em retornar pelo mesmo caminho, pois que o silêncio reinante, também nos meus espaços internos, desencadeava o medo. Mas, após exaustiva busca, medo maior seria não chegar. Medo, não! Pavor! Quem me contara acerca da antiga residência e de sua misteriosa ocupante? Já não me lembrava com certeza. A história, envolvida por mitos, perpetuava-se oralmente em minha família e me impelira a arriscar essa longa viagem apenas para ter certeza: Sim, ela existia… Era real!
Finalmente o grandioso portão divisou-se à minha frente, camuflado entre os arvoredos. Era composto por várias pranchas de madeira maciça, presas à grossas vigas de ferro, por pregos largos e limosos. A pesada argola de metal emitiu um barulho surdo de batidas que ecoaram na noite, e rangendo sobre as dobradiças, lentamente ele abriu-se para uma alameda interna, cujo corredor era composto por cedros enfileirados. Aqui e ali piscavam as verdes lanternas dos vaga-lumes e rebrilhavam retinas de animais ocultos pela noite. Ao fundo, na clareira aberta sobre a relva, divisei finalmente O Lar. Ali, eu tinha certeza, encontraria as respostas que até então andara procurando. Recebeu-me a Nobre Dama, em pessoa, na entrada imponente do Solar. Dentro de sua longa veste escura parecia ainda mais austera. A tez alvíssima. Os cabelos lisos e grisalhos, presos em grossa trança formavam uma volumosa coroa em torno da cabeça. Pisei sobre o tapete tecido de felpudos fios de lã e, olhar fixo no seu, parei. Sua voz grave e solene ecoou pelo átrio amplo, iluminado por longas velas e tocheiros, o odor de cera impregnando o ar: “Você ficará conosco por dez semanas. Este será seu período de noviciado, antes do compromisso com a nossa Ordem. Dez semanas para ser tocada pelas leis básicas da Vida e para entender seus mistérios.” Depois, discreta, indicou-me com a mão de dedos longos, o caminho de meus aposentos.
Nos dias que se seguiram, descobri mais coisas sobre mim mesma do que durante a vida inteira. No momento certo, com certeza, passarei adiante as lições que lá aprendi. Por enquanto, em noites de lua cheia, eu acendo o fogo de viçosas labaredas, às quais acrescento ramos verdes de avencas, arnica da serra, hortelã, macela, malva, alfazema e preparo as infusões, em meio às frases mágicas de evocar as fadas. Por enquanto eu as guardo para mim, pois que não chegou a hora de ensiná-las. Mas logo chegará… (Ludmila Saharovsky)

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