De fotos e edredons

No final do outono, o avô montou um acanhado estúdio fotográfico, num pequeno quarto, próximo ao que ocupávamos, no campo de refugiados Lager Parsch, junto à floresta, em Salzburg. Aquele espaço criativo repleto de tinas de água, cortinas negras, líquidos, emulsões e varais para secagem de fotos foi, para mim, um universo de descobertas! Eu ficava fascinada ao testemunhar que imagens podiam ser capturadas e impressas, servindo como elo de ligação entre pessoas, épocas, locais e coisas. A revelação de fotos foi meu aprendizado da mais pura alquimia. Ficar defronte à uma pequena caixa que o observa através de uma lente, e, após um clique, retém em seu interior seu reflexo para depois materializá-la no papel… era o mesmo que testemunhar um milagre!Milagre quase igual àquele que fixou o semblante de Jesus no pano que lhe foi estendido por Verônica durante a Via Crucis. Manusear as inúmeras fotos de pessoas, objetos e lugares, familiares ou desconhecidos, e assimilar o processo de sua confecção foram vivencias que me permitiram desenvolver uma percepção mais aguçada do mundo, além de me abrirem a visão para detalhes, para a valorização de luz e sombra, perspectiva, composição e, principalmente, para a difícil compreensão de que tudo na vida é efêmero e passageiro.
As imagens espalhadas sobre a mesa tosca do ateliê de meu avô, iam sendo coloridas com aquarelas: As paisagens ganhavam nuances verdes e azuis; as mulheres, finos adornos e vestimenta colorida; as pessoas idosas, rugas atenuadas. Muitas vezes a mãe juntava-se a nós e se permitia algumas interferências: ” Vovô…não acha que o amarelo desse fundo poderia tornar-se um pouco mais ocre?” “Creio que o céu precisaria de menos cor lilás…está um tanto artificial…”
Foi em meio a uma seção de trabalho como essa, que o pai entrou agitadíssimo no aposento e, atirando seu inseparável quepe para o ar, suspendeu a mãe do solo, e, rodopiando com ela suspensa pela cintura, repetiu inúmeras vezes, não disfarçando a euforia: “Nós conseguimos! Conseguimos! Vamos encaixotando as coisas, dentro de uma semana partimos para o Brasil”!
Para o Brasil! Parecia um sonho.Tanto tempo aguardando um país que nos aceitasse…Tantos vistos recusados, tanta esperança vindo por terra, tanta angústia, tensões, privações, despedidas de amigos, cada qual seguindo para nova pátria…e nós ficando, sobrando, sendo preteridos, por quê?
Nenhum país propunha-se a aceitar uma família que possuía, além do sobrenome politicamente comprometedor, uma criança que ainda precisava de cuidados e dois idosos de contrapeso.
O Brasil aceitou! O movimento que antecedeu os dias de nosso embarque permanece impresso em mim, como as imagens nas fotografias. O avô e o pai transformando as tabuas dos suportes das camas e das mesas, em grandes baús (pelo menos, à época, assim me pareciam, pois eu cabia neles, com todas as minhas roupas, brinquedos, cobertores e travesseiros) A avó embalando em folhas de jornais a pouca louça, a mãe revendo seus desenhos, cartas, livros, e os acomodando em pacotes envolvidos por grossas folhas de papel pardo, fortemente atadas por cordões de barbante… Faltava acondicionar os ícones e o samovar. O samovar, não teria problemas, poderia ir acomodado em meio aos edredons. “Aos edredons?” Espantavam-se os vizinhos…”Mas vocês estão indo para os trópicos!Para os trópicos! Lá não existe inverno!” E riam, repetindo em tom de galhofa: “Os Saharov vão levar os edredons para o Brasil!” “Para cobrir os papagaios!” Eu ouvia aquelas conversas e me espantava: Seria possível existir no mundo um país no qual não houvesse inverno? Impossível! Assim, o samovar, conforme planejado, foi para o fundo do baú e hoje, reluzente, testemunha junto aos ícones o quanto edredons são úteis aqui, nesse início de inverno, no meu Vale do Paraíba. (Ludmila Saharovsky – Tempo Submerso)

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    5 pensamentos sobre “De fotos e edredons

    1. ai Lud, eu só choro emocionada quando leio suas palavras vivendo teu passado.Não, não é ruim chorar assim…rs, é lindo viver em um mundo no qual não me pertence e vivê-lo intensamente com o fervor das suas palavras. Obrigada por me, digo, nos levar ao espaco de teus pensamento onde tempo não existe. Você é inspiracao sempre!

    2. Obrigada, Cristiane, querida! Realmente viajar nessas histórias de vida, tanto próprias, quanto dos amigos, é habitar o tempo de uma outra maneira. Obrigada pelo carinho de sempre! Beijão!

    3. ludmila, I feel really sad hearing all these, for me refugee camps are stories only, never seen even. I wish I had Veronica's towel to wipe your bruised face wounded by history so merciless on its own creators. ludmila, exodus runs through me.

    4. My dear friend, your words touched deep in me. My family is Russian and had to leave their country for political reasons. Stalin murdered 22 million Russians to keep their regime of terror. Those who escaped, as my parents and grandparents were never the same. A sadness of soul always accompanied them. Today, I try to be happy for them. Get my loving embrace!

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